quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Porque é Natal


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Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que se veja à mesa o meu lugar vazio 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que só uma voz me evoque a sós consigo 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que não viva já ninguém meu conhecido 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem vivo esteja um verso deste livro 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que terei de novo o Nada a sós comigo 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem o Natal terá qualquer sentido 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal' 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

sobre a morte e o morrer
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Uma leitura das Intermitências da morte de José Saramago


“No dia seguinte, ninguém morreu”. É deste modo que José Saramago enceta esta obra em que, incompreensivelmente, com uma mudança de ano letivo, a morte cessa a sua missão de retirar a vida aos habitantes de um país. Inicialmente, estes experienciam uma sensação de puro êxtase, pois veem o facto de terem a eternidade pela frente como um verdadeiro milagre, uma autêntica dádiva de Deus. No entanto, depressa surgem implicações, entrando as estruturas sociais, políticas e religiosas em colapso.
           A sociedade começa a desmoronar-se e a sentir os efeitos negativos provenientes daquele fenómeno quimérico aparentemente utópico, nomeadamente, torna-se excessivamente doloroso para as famílias assistir ao sofrimento dos seus entes-queridos que não morrem, mas sofrem com as limitações provenientes da idade. Deste modo, surge uma organização, a Maphia, cujo objetivo é transportar indivíduos até à fronteira, para que estes possam deixar de sofrer e encontrar o seu caminho para um novo mundo.

Até que, certo dia, a morte reaparece neste país já desmoronado pela sua ausência. São enviadas cartas a anunciar aos desditosos destinatários que a sua morte se avizinha, para que possam desfrutar dos seus últimos dias. Porém, certa vez, uma das missivas, dirigida a um violoncelista, regressa às suas mãos, não sendo enviada com sucesso. A morte, perante este entrave, toma forma humana para que possa solucionar a complicação que havia surgido. Conseguirá, o violoncelista, vencer a morte? Ou, pelo contrário, será levado, como tantos outros, por ela?

TEXTO DE APRECIAÇÃO CRÍTICA

Decidi escolher esta obra, uma vez que o facto de se tratar de uma profunda reflexão acerca da vida, da morte e dos comportamentos humanos, despoletou o meu interesse. De facto, considero que estes aspetos se encontrem estritamente relacionados, pois sem vida, não haveria morte, influenciando esta, inúmeras vezes, os comportamentos humanos. Além disso, esta narrativa representou, desde o início, um verdadeiro enigma para mim, devido, essencialmente, ao título que apresenta: As intermitências da morte. Estas palavras arrebatadoras estimularam o meu interesse pela obra e fizeram nascer em mim uma enorme vontade de a desvendar.

Como já referi, considero o título de uma vasta imaginação, principalmente pelo recurso ao nome “Intermitências” que se aplica perfeitamente à obra em análise, visto que nesta a morte não revela uma atividade contínua. De facto, esta cessa a sua atividade por um período de tempo, regressando depois e, num último momento, em que seria de esperar que retirasse a vida ao violoncelista, não o faz, uma vez que compreende que se apaixonou por ele. Com efeito, a meu ver o título está deveras bem pensado, adequando-se na perfeição, pelo que não o alteraria. Do meu ponto de vista, o vermelho é o tom que melhor se identifica com a narrativa, uma vez que simboliza a paixão e a vida. Na realidade, a morte, aquando do desenlace do livro, é surpreendida pelo amor, sendo que este faz com que ela não seja capaz de retirar a vida ao violoncelista. Assim, o amor estimula-nos a dar o melhor de nós a quem amamos, pelo que a morte não é capaz de entregar a carta com a respetiva sentença de morte ao violoncelista. Simultaneamente, a morte, quando se apaixona, sente-se mais viva do que nunca e, finalmente, é capaz de experienciar a felicidade que o amor correspondido proporciona.

Esta obra mostrou-me que a morte é um verdadeiro mal necessário, uma vez que, na sua ausência, a sociedade se desmorona em múltiplos aspetos, nomeadamente na religião, pois “Sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há igreja”. Sendo assim, apesar de a morte ser, aparentemente, cruel e impiedosa, na verdade, é uma consequência natural da vida, sendo que a sua ausência faria diversas estruturas sociais entrar em colapso, trazendo, portanto, inúmeros inconvenientes para nós.

Para além disso, com esta narrativa aprendi que o poder do amor nos transforma por completo. Na verdade, a morte, quando se apaixonou pelo violoncelista, sentindo-se motivada a dar o melhor de si, mudou radicalmente: deixou de ser cruel, vil e vingativa, e passou a ser bondosa e tranquila. Daí a obra acabar precisamente da maneira como começa: “No dia seguinte ninguém morreu”. Assim, o poder do amor é bem mais forte do que o da morte, pelo que o devemos conservar intacto no nosso interior.

Pude também constatar que a morte é, decerto, o maior mistério da existência humana e assim permanecerá. Na verdade, ninguém tem conhecimento acerca desta, apenas vivendo a morte dos outros. No entanto, “Cada um de nós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-lhe, tu pertences-lhe”.

            Percebi, ainda, que as palavras são meras designações de que dispomos para nos referirmos aos objetos ou seres que nos rodeiam. Assim sendo, as palavras são deveras importantes na comunicação. No entanto, tendem a ser demasiado vagas, referindo algo sobre o qual há muito mais a dizer do que simplesmente o que a palavra transparece (“As palavras são rótulos que se pegam às coisas, não são as coisas, nunca saberás como são as coisas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste”). Deste modo, temos que interpretar sempre os múltiplos sentidos das palavras, para que, vistas de diversas perspetivas, lhes saibamos atribuir a devida importância.

            Por fim, a frase “A morte, sozinha, sem qualquer causa externa, sempre matou muito menos que o homem.” fez-me refletir verdadeiramente. De facto, apesar de muitas vezes, a morte levar as pessoas consigo, injusta e inesperadamente, o Homem sempre se revelou cruel, em toda a história da humanidade. A título de exemplo, destaco a Segunda Guerra Mundial, em que os judeus eram fuzilados e mortos sem piedade e a atual situação dos refugiados, que deixam o seu país, o seu lar, e partem para o desconhecido, sem quaisquer garantias. Muitos deles perdem familiares e amigos pelo caminho e, mesmo assim, têm que seguir em frente. Não podem parar, porque todos os segundos contam.

            Considero que me identifico um pouco com o violoncelista pelo qual a morte se acaba por apaixonar, uma vez que este se trata de uma pessoa humilde, simples e que não se conhece verdadeiramente, utilizando a música como refúgio para a sua solidão. De um modo idêntico, sinto que ainda estou a descobrir quem realmente sou e por que caminho quero enveredar de modo a que o meu futuro seja o que idealizo e com que sonho desde sempre.

 Quanto ao léxico, Saramago utiliza um vocabulário eloquente e rico, estando presentes alguns arcaísmos que, a meu ver, enriquecem a obra, pois mostram que o autor é uma pessoa que tem uma paixão pelas palavras e tenta empregar as mais variadas.

Aconselharia esta obra a todos aqueles que se gostam de deixar envolver em leituras fortes que veiculem autênticos valores, para que compreendem que o poder do amor é invencível, nem sendo capaz a própria morte de lhe resistir. O amor muda-nos por completo, transformando-nos, tal como a leitura, que nos faz ver mais longe e entender os significados ocultos de todas atitudes e palavras. Sendo assim, considero que este êxito de Saramago deveria ser lido por todas as pessoas corajosas e intrépidas, pois esta obra é, deveras, forte e tem que ser interpretada com garra e ousadia.

A meu ver, o poema “A morte chega cedo” da autoria de Fernando Pessoa espelha a mensagem desta narrativa, visto que mostra que a morte é algo incontornável, da qual não nos podemos esconder, pois ela encontrará sempre o caminho até nós. Simultaneamente, o poema revela que não podemos tentar prever o nosso destino, uma vez que este já está traçado desde que nascemos. Deste modo, a morte é algo vago, que ninguém é capaz de compreender verdadeiramente, pelo que apenas nos resta aceitar o destino que Deus preparou para nós e aproveitar ao máximo tudo o que a vida nos oferece.

A Morte Chega Cedo

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.


Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'
Ana Catarina Manso - 14 anos