quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Natal

Vamos ao Natal. pelo ano Novo... para todo o ano. 

A companhia é boa, a mensagem, actual. 



NATAL


Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa
(Contemporânea, nº 6, Dezembro de 1922)

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Sem o corpo, Deus não se encontra

Eis um magnifico excerto acerca de Deus, para crentes, agnósticos e ateus, de um excelentíssimo livro: as Confissões de Sto Agostinho

Tarde vos Amei

Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!

Retinha-me longe de Vós  aquilo que não existia se não existisse em Vós. Porém chamastes-me com uma voz tão forte que rompeste a minha surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por Vós. Saboreei-Vos , e agora tenho fome  e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo de Vossa paz. 

Sto AGOSTINHO, Confissões, 11ª ed, braga, AI, livro X, 27, pp. 266-267

segunda-feira, 25 de maio de 2020

De como uma pandemia assim, assim, virou em impensável "palermia" o mundo todo




A PANDEMIA VENCERÁ O HEDONISMO? NÃO, NÃO VENCERÁ!!!
Artur Manso

O prazer e a felicidade
A expressão mais ouvida ao longo do confinamento, de alcance mundial, devido à digressão que o vírus covid-19 decidiu fazer através dos humanos é que irá ficar tudo bem. Mas o que vai, então, ficar bem e para quem? Na existência da humanidade, desde o seu início, parece haver uma competição permanente entre homens, bactérias e vírus. Na verdade este é apenas mais um vírus, mas o que terá levado os políticos a, pela primeira vez na história da humanidade, num tempo de triunfo do individualismo e onde o hedonismo se instalou, a circunscrever aos seus domicílios, com sucesso rotundo, os seus habitantes? Num tempo de aceleração vertiginosa, onde se discute e legisla sobre a abreviação da morte a pedido, onde se vive a maior parte do tempo a pensar apenas no imediato, o que levou os indivíduos a um estado de aceitação voluntária de perda básica da liberdade? Que direito têm os Estados, democráticos ou não, de impedir a decisão individual numa crise desta natureza sobre a qual pouco se sabe e muito se ignora? O hedonismo tem uma longa história, tendo sido propagado pelo contemporâneo de Sócrates, Aristipo de Cirene (ca. 435-335 a.C.), que defendia que o prazer, independentemente da sua origem é o único caminho para a felicidade, podendo, assim, coincidir com o sentido da vida. A contemporaneidade, no discurso social e político, nos códigos de direito e nas constituições dos Estados, verte com insistência os princípios ensinados por Sócrates, Jesus e outros sensatos mestres da humanidade, mas na prática do quotidiano e na maneira como organiza a vida em sociedade, rendeu-se há muito aos que eles mais combateram. E não é só a juventude, a qual em todo o tempo e lugar mantém a tendência de viver no limite do risco e da subversão. As gerações instaladas são as maiores responsáveis por este estado de coisas, pois cristalizam os maus exemplos ao passar a vida focados no trabalho para cada vez acumularem mais capital que hão-de gastar adquirindo bens materiais que lhes permitam distinguir-se do outro, deixando as relações humanas fora das suas preocupações imediatas. É verdade que continuam a unir-se maritalmente e a gerar filhos, mas essas partilhas não são o centro dos seus interesses e os filhos aparecem enquanto herdeiros do legado acumulado.  Os maiores aliados do homem contemporâneo são, com o êxito da tecnologia, os sofistas e os hedonistas. Os primeiros triunfaram com a relatividade dos valores e a crença absoluta de que a ciência e a tecnologia permitem a vida perfeita à comunidade dos humanos. Os segundos, com a vulgarização de que a vida é o momento e pouco interessa o dia de amanhã. Todas as crises mostram, independentemente da sua extensão, que a bondade humana existe, mas revela-se apenas nos piores momentos da vida societária, sendo posta de parte logo que o normal é retomado. Tinha razão Baudelaire (1821-1867) quando referia que a natureza não ensina nada ela “constrange o homem a comer, beber e dormir, é a voz do nosso interesse. Na natureza apenas há atrocidades”, o “progresso acabará por atrofiar tanto o que em nós há de espiritual que nada do que os utopistas algum dia imaginaram nas suas intervenções sacrílegas, sanguinárias e antinaturais se poderá comparar aos seus resultados positivos”.

O medo
Chegados a 2020, em pleno triunfo da ciência e da tecnologia, esperar-se-ia quando este vírus apareceu, uma atitude mais ponderada tanto mais que, demorou alguns meses a instalar-se e de certo modo eram previsíveis, precisamente pela ciência e a tecnologia, o tipo de estragos que iria provocar. Os responsáveis políticos, primeiro, deixaram andar e depois, quando a mortandade não podia ser evitada, decidiram fechar as pessoas em casa, separando uns dos outros, numa atitude manifestamente exagerada e para a qual não se encontram mandatados. Seria preciso controlar e restringir as fronteiras? Sim, com certeza. Identificados os grupos de risco, impunha-se que fossem protegidos? Sim, com certeza. Era preciso dentro dos países limitar aglomerações de pessoas? Sim, com certeza. Era preciso repensar a maneira de organizar o comércio e os serviços? Sim, com certeza. Mas era preciso fechar os sectores da sociedade, de igual modo, em todos os países após a mortandade já se ter instalado? Por tudo que sabemos, não, não era. As escolas não precisavam de encerrar porque as crianças e os jovens não constituem um grupo de risco. Se o problema era não poderem passar tempo com os avós e outros cuidadores mais velhos, apenas esse impedimento se justificava. Se os cafés, restaurantes e restantes serviços deviam evitar aglomerados de gente, reduzia-se a lotação. Se os templos da fé tinham que acautelar ou retirar parte dos rituais e prover no seu interior ao distanciamento, tomavam essas precauções e mantinham o culto. Se havia necessidade de distanciamento físico, promovia-se esse comportamento, mas destruir por igual o ganha pão de milhões de cidadãos por causa de um medo instalado que não evitou a mortandade, não me parece sensato. Voltando aos mais velhos, ao grupo de risco, não compete ao Estado decretar quando podem ou não podem sair de sua casa. Essa autoridade tê-la-á porventura em relação aos que estão institucionalizados por nesses casos conflituarem dois direitos: o do individuo e o do grupo com quem partilha o dia a dia. Nos casos em que vivem em residência própria, compete ao Estado apenas e só alertá-los para aquilo que lhes pode acontecer se frequentarem o espaço público, os problemas que podem vir a ter e certificar-se de que na vida societária, cumprem as regras de segurança. Os Estados apenas podem obrigar os infectados ao confinamento. É um grave atentado aos direitos individuais forçar alguém a ficar retido nos seus aposentos meses ou anos, sem poder ser visitado por filhos, netos e amigos, com a promessa que estão a preservar a sua saúde. Essa decisão pertence a cada um consciente dos riscos que corre. Não me parece que uma parte significativa dos idosos prefira o isolamento ao convívio com outros e colocada a escolha acho que não prescindirão de abraçar e acarinhar os filhos e netos em troca de um hipotético aumento de tempo de vida. As decisões sobre a vida e a morte devem ser da inteira responsabilidade do indivíduo e não do proclamado interesse geral da sociedade.
No tempo de triunfo das redes sociais, da vida em directo, chegamos à conclusão que afinal, na realidade portuguesa, ainda há um número considerável de indivíduos em idade escolar sem qualquer acesso ao mundo digital e por isso ficaram imediatamente privados das aulas virtuais que substituíram as presenciais. Identificada essa carência porque não pôde o Estado, em algumas das suas escolas, continuar a acolhê-los normalmente no período lectivo, como fez e bem, com os filhos dos profissionais de saúde e segurança, garantindo-lhes iguais condições de acesso à aprendizagem? Que dizer da dedicação de todo o sistema de saúde ao vírus, exceptuando os serviços de urgência, com graves prejuízos para milhões de cidadãos que viram adiados tratamentos e intervenções médicas essenciais? Quantos deles, hão-de acabar por falecer por falta de tratamento? Que dizer da falta de equipamento de protecção que grassava nos serviços, fazendo perigar a vida dos seus profissionais?   
Parece que os países eram constituídos por realidades sociais que se desconheciam umas às outras. Os idosos viviam a sua solidão, os mais jovens um pouco alienados no fruir o dia a dia como se não houvesse amanhã, os trabalhadores, na generalidade, obcecados com a produtividade e os respectivos ganhos que os levariam em breve a um qualquer local paradisíaco para um repouso merecido recheado de todas as comodidades. E veio um bicho microscópico, que nem é assim tão ofensivo, andou por aí, fez-se anunciar, deu-se a conhecer e a tudo, os Estados todo poderosos, reagiram com arrogância e distanciamento. Instalado no seu seio, de imediato, não foi o pânico que tomou os países e as populações mas sim o medo. E que medo! Nem foi preciso muito esforço para as convencer a confinar-se nos seus lares, afastando uns dos outros, com a convicção de que só assim o bicho haveria de passar e as sociedades ficariam mais ou menos incólumes. O povo, obedientemente, ficou em casa mas a mortandade não diminuiu. Pessoalmente não acho má ideia fazer-se uma espécie de retiro durante um período alargado de dias. Mas assim não, porque as pessoas foram obrigadas a ficar em casa por um princípio maior, aí permaneceram por períodos cada vez mais longos, mas os óbitos demoraram a baixar. E continuamos mais ou menos amedrontados à espera da milagrosa vacina que nos devolva as vidas suspensas, para, no instante que a normalidade regressar, tudo voltar ao que era anteriormente. Entretanto, uma larga camada da população demorará muito tempo até recuperar aquilo que tinha e que os Estados, arbitrariamente, decidiram finalizar. Se a moda pega, doravante passaremos a ter confinamentos regulares pois não se prevê que a competição homem–vírus–bactérias fique por aqui. Já agora, em toda a crise, alguém notou diferenças de procedimento no cerceamento dos direitos fundamentais mais básicos dos cidadãos nos Estados democráticos e nos regimes totalitários?   

O luto
E as reacções!!! Entre a mais repetida a de estarmos em uma guerra. Mas felizmente isto não é uma guerra. Há mortos em quantidade elevada? sim, há. Os serviços de saúde em diversos países entraram em rutura? Sim, entraram. Há milhares de pessoas que choram os entes queridos? Sim, há. Mas passando o vírus, não haverá destruição física de países, cidades, lugares variados, não haverá corpos mutilados e retalhados, não haverá milhões de pais a chorar os seus filhos que foram impedidos de viver… haverá milhões de vidas alteradas, mas nada que se compare ao sofrimento de uma guerra, as pessoas reencontrar-se-ão nos espaços do costume e não em escombros pestilentos, mesmo que uma parte significativa de indivíduos tenha que se focar, de novo, em arranjar forma de viver. Até este esforço será diferente dos anteriores quando os indivíduos viam a sua base de trabalho desaparecer por circunstâncias exteriores, agora, foram os governantes que unilateralmente obrigaram a fechar as suas bases de sustento. E se ainda lhes mantivessem os vencimentos como até aí já que foram eles a provocar a situação, mas não! O vírus passará e cada um terá que se desenrascar e tratar da sua vida, resistindo também ao traumatismo dos funerais sem despedida e sem ritual. Haverá dificuldade em superar a ausência dos próximos sem nos ter sido permitido, um beijo, um abraço, um afago. Sem os velarmos e para aqueles que são crentes, sem poderem ser amparados pelas orações que sempre os acompanharam, que se tinham habituado a pronunciar nos funerais em que participaram como uma espécie de antecâmara do que haveria de ser quando o dia da sua morte chegasse. O dia chegou e todo o ritual lhes foi negado. Não porque tivessem sucumbido em uma guerra ou pura e simplesmente desaparecido sem se saber para onde, mas porque, morrendo na solidão dos hospitais ou no isolamento do lar, alguém impôs como melhor medida, um rápido funeral, na quase ausência dos mais próximos. Haverá tempo para o luto, dizem, mas o luto faz-se no momento da morte e não à posteriori quando provavelmente, alguns dos que foram impedidos de velar um ente querido, terão, também, já partido. Dizem-nos ser um sacrifício necessário, em prol de um bem maior, mas eu não partilho dessa opinião. Haveria outras formas de lidar com este vazio e estou convencido de que há um número substancial de indivíduos que lúcida e esclarecidamente gostariam que tivesse sido possível poderem optar por estar presentes. As medidas tomadas pelos governos em todos os sectores das respectivas sociedade foram amplamente desproporcionais em relação à gravidade do problema, pois como se tornou evidente, a pandemia variou de país para país e dentro de cada um, de região para região e, sendo assim, tratar tudo como igual, não terá sido a melhor estratégia.      

A esperança  
O mundo hoje nem é melhor nem pior que em outros tempos. É o mundo que temos ou o mundo possível, como discutia em 1759 o iluminista Voltaire em Cândido ou do optimismo aquando do terrível terramoto de Lisboa de 1755. O jovem Cândido educado por Pangloss sob os ensinamentos do optimismo de Leibniz, confrontado com a indescritível devastação natural acontecida numa cidade populosa sem se fazer anunciar, acaba por moderar o optimismo, combatendo a ideia de que o homem com a ciência e a técnica se basta a si mesmo. Esta ocorrência era a prova que “o melhor dos mundos possíveis” é aterrado por acontecimentos limite que ultrapassam a vontade e o conhecimento humano. Mesmo um expoente do iluminismo e da crença absoluta na razão e no progresso como Voltaire, ante a brutalidade que o terramoto introduziu na pacata vida de cada um, realisticamente, coloca na boca de Cândido que não nos devemos ater à exaltação de que vai tudo bem, mas “o que é preciso é cultivar o nosso jardim”. Que jardim ficará quando a pandemia nos deixar? Haverá pequenas mudanças, boas e más, mas tudo voltará ao que sempre foi. Pela longa história da humanidade e pelos conflitos traumáticos recentes onde se destaca, pela sua dimensão de horror em massa a 2ª grande guerra, bem como diversas catástrofes naturais recentes de grande dimensão, haverá uns dias de proximidade solidária, de espécie de mudança interior, que ajudará uma parte do luto que teremos que fazer. A partir desse breve momento, tudo voltará ao normal, isto é, à alienação da produção e do consumo longe da preocupação pelo outro e aqui o outro é mesmo o mais próximo, aquele que habita connosco. Arranjar-se-ão outros heróis a quem momentaneamente se hão-de bater palmas. Na verdade, a esperança foi uma oferenda que os deuses num acto de fúria consentiram aos humanos e como até aqui, solitariamente, continuará circunscrita à panela de onde Pandora não a deixou sair à espera de um novo tempo que há muito nos é prometido mas que não será ainda desta vez que se há-de consumar. A esperança é o horizonte dos hercúleos trabalhos da humanidade, pois estamos sempre ansiosos por destruir Troia para nos podermos redimir voltando a Ítaca. Mas Ítaca fica lá longe e pelo caminho, nós que somos apenas humanos, sucumbiremos de imediato às primeiras tentações. Nem todas as vidas somadas nos darão o tempo necessário para avistar esse lugar de partida, quanto mais para nele voltarmos a repousar. É nesta (con)fusão que as sociedades continuarão a viver: solidárias nos momentos limite, desleixadas nos restantes períodos de tempo. Termino deixando este esforço da persistente viagem de que a humanidade nunca se há-de livrar no singelo, mas profundo, poema de Francisco Sardo, precisamente intitulado Ítaca:

                        de Ítaca ficou-nos a distância
                        ou a viagem de tudo ainda podermos

                        - paixão do labirinto   onde tecemos
                        o que nos resta embora
                                                              na abundância
                        do que perder nos cumpre em cada hora

                        só a viagem vale         e nos devolve
                        (na cidade que depois esqueceremos)
                        o que memória foi da intensidade.

Artur Manso

quinta-feira, 30 de abril de 2020

O passado do presente

Para tentar compreender o antes, o durante e o depois da pandemia aqui fica um belo poema espécie de demanda do individuo que se busca a si mesmo.

Tennyson (1809–1892)

Ulisses

De nada serve a um rei ficar inerte,
No lar quieto, em meio à rocha infértil,
Unido a esposa idosa, eu doo e imponho
Iníquas leis a um bando de selvagens
Que soma, e dorme, e engorda, e não me vê.
Estou inquieto: Sorverei da vida
A última gota: Sempre gozei muito,
Sofri muito, com todos que me amaram,
E só; em terra firme, ou arrastado
Por negras correntezas irritadas
Pelas Híades: Transformei-me em nome;
Errante sempre, com ardente impulso
Muito vi e conheci; cidades de homens
E costumes, conselhos, climas, regras,
E a mim mesmo, por todos sempre honrado.
Traguei da pugna o gozo junto aos meus,
Longe na Tróia dos ventantes plainos.
Sou parte, enfim, de tudo que encontrei;
A experiência é um arco pelo qual
Vislumbro um mundo inexplorado, cuja
Margem se afasta sempre ao meu mover.
Que tolice o parar, o dar um fim,
Enferrujar assim, sem uso e brilho!
Como se respirar fosse viver.
Quão pouco, vidas sobre vidas! Desta,
Pouco resta: mas cada hora é salva
Do que é silêncio eterno, um algo além,
Arauto do que é novo; vil seria
Guardar-me, agrisalhando por três sóis,
A alma cinzenta ardendo por seguir
O saber como um astro que se afoga,
Além do limiar do pensamento.
Este é o meu filho, meu fiel Telémaco,
Para quem eu relego o ceptro e a ilha –
Meu bem-amado, hábil a cumprir
Esse labor, prudente domador
De um povo rude, e mansamente, aos poucos,
Vai sujeitá-los ao que é bom e útil.
Irreprochável, centra-se na esfera
Dos deveres comuns, decente para
Sutis ofícios, prestará tributos
De justa adoração aos nossos deuses
Quando eu me for. Ele obra o dele, eu o meu.
Lá jaz o porto; O barco estufa as velas:
Ensombram grandes mares. Meus marujos,
Almas que lutam, sofrem junto a mim –
Que, jubilosas, acolheram sempre
Trovão e sol ardente, opondo frente
E fronte livres – nós estamos velhos;
Na velhice, persiste a honra e a luta;
A morte é o fim: mas antes, algum feito
Notório e nobre está por se fazer,
Sem impróprios conflitos com os Deuses.
Luzes estão a cintilar nas rochas:
O dia míngua: a lua ascende: o abismo
Gemendo em muitas vozes. Venham, homens,
Não tarda a busca por um novo mundo.
Partam, em ordem todos, e fulminem
As sonoras esteiras; Meu intento
É navegar além-poente, e sob
Estrelas do ocidente, até morrer.
Talvez vorazes golfos nos devorem,
Ou então, nas Afortunadas Ilhas,
Vejamos grande Aquiles, caro a nós;
Mesmo perdendo muito, há muito à frente,
Ainda que como antes não movamos
A Terra e o Céu; O que nós somos, somos;
O mesmo heroico peito temperado,
Fraco por tempo e fado, mas forte a
Lutar, buscar, achar, e não ceder

sábado, 28 de março de 2020

A Tabacaria ... vista por Fernando Pessoa

Entre o tempo e o desencanto. A Tabacaria vista por Fernando Pessoa

 Álvaro de Campos
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

domingo, 15 de março de 2020

A tontice de uns quantos tontos



As formas disto são estas, mas quem as vê?

Son siete los casos confirmados por Covi-19 en México

A globalização serve para isto, tornar democrático uma insignificante "coisa" que apenas muito poucos podem ver:
1. qual o problema de as pessoas pararem duas ou três semanas?
2. o que é isso, a economia, que acaba por se sobrepor ao bem comum?
3. quem realmente conduz os povos, a política ou a economia?
4. não se prevendo que o mundo acabe amanhã, nem sequer este vírus é assim tão mortal, não terá a economia condições de recuperar rapidamente no mais essencial, já que apenas a mão de obra, em consequência da falta de procura está a ser afectada?
5. não será este um período de excepção mais parecido com um armistício do que com o quase declarado estado de guerra?
6. das janelas e vidraças que guardam a nossa reclusão não teremos agora tempo de olhar os matizes que nos envolvem sem nunca neles termos reparado?
7. não é esta uma oportunidade para olhar apenas o que mais importa?
8. como perspectivar afinal a nossa relação com a natureza?
9. queremos continuar o afastamento com a nossa condição original ou voltar ao intimo de cada coisa?
10. ou continuaremos como até aqui: iguais ao que sempre fomos, egoístas e matreiros?