terça-feira, 2 de julho de 2019

Agostinho, outra vez


Da razão (agostiniana) de todos sermos UM

Na principal apreciação de Fernando Pessoa sobre o Infante D Henrique, o português pioneiro da globalização, escreveu que “Deus quis que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse” e fez questão que os executores desse trabalho fossem os ignorantes marinheiros portugueses. Depois deles “Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.” Contudo falta, ainda, “cumprir-se Portugal”. Em tempos recentes Agostinho da Silva quis actualizar este desiderato, alargando o conceito de Portugal e transformando-o pela colaboração de todas as partes do império num espaço de verdadeiro ecumenismo universal. Sem povo não há renovação da humanidade e sem o simbolismo da criança como imperador do mundo como descrito no Culto Popular do Espírito Santo não há verdadeiro universalismo. Ora o espaço dos PALOP é por essência universalista e ecuménico, pois todo o povo da língua portuguesa, nas palavras de Agostinho da Silva, é “candidato a entender o mundo na sua plenitude, e a fazer o possível por não se meterem em tarefas que os não divirtam” (entrev. a Carlos Vaz Marques, Fev. 1990).
No tempo em que os Impérios acabaram e que jamais haverá condições de criar outros semelhantes, como falar então de um espaço alargado de língua portuguesa sem reminiscências da velha tradição imperial? Uma das formas, talvez a mais interessante, é construir o Império da língua portuguesa assente em fundamentos estéticos que Agostinho da Silva plasmou primeiramente na simbologia do Espírito Santo ligado de forma particular a Portugal, mas que se encontra espalhada um pouco por todo o mundo. Assim, as novas relações entre os PALOP deverão, mais que económicas, ser culturais. A economia será subsidiária da cultura ao inverso do que hoje, tal como no passado, acontece. Na época medieval, quer os Estados, quer a Igreja, que quase sempre se confundiam, mantinham uniões através da força, submetiam os mais fracos ao poder dos mais fortes, mas a Idade Média, pelo forte pender estético e místico em que se encontrava submersa, fornece a Agostinho uma ambiência de fraternidade universal que nunca mais se repetiu.
A miscigenação era vista por Agostinho da Silva como um suporte da universalidade tão apregoada mas sempre tão afastada do quotidiano dos povos. Com ela procedeu-se à complementaridade de culturas por uma espécie de laços de sangue que aumentaram as capacidades humanas em prol do bem comum. O Brasil no espaço dos PALOP é onde a miscigenação mais influência teve no aparecimento de uma nova maneira de ser Português e Universal. O Brasil fornecia a Agostinho um bom modelo de futuro aos PALOP e ao mundo por aí se ter criado uma comunidade fundada “Na convivência humana […] na fraternidade e não sobre a lei, sobre a liturgia e não sobre a conquista, sobre o predomínio da vontade de deus e não sobre o predomínio da vontade do homem” (Agostinho da Silva, A cultura brasileira).
A criança era para Agostinho o melhor que o mundo tinha e a poesia mais pura teria de servir as características que distinguem a infância. Desta forma, todos os indivíduos em qualquer idade têm o dever de voltar a ser crianças, de orientar a sua vida pelo gratuito, em liberdade plena. O mundo e a vida é marcada pelo imprevisível e por isso todos nós temos que orientar as nossas energias para aquilo que ainda não existe. O dever de todo o homem é “ser um poeta à solta” com a capacidade sempre actuante de sobrepor a imaginação à razão, onde o Ser passe a prevalecer sobre o ter. Contudo, realisticamente, o individuo só pode ser poeta e andar por aí à solta quando tiver resolvido, na organização social, o problema da fome, o problema da saúde, o problema da higiene e da habitação, o problema do trabalho. Só depois de cumpridos estes desideratos, cada um, em consciência, pode renunciar àquilo que à partida já possui, e não o inverso.
Viver de forma autêntica é viver livre das escolhas do ter. Aquilo que é básico para a vida, saúde, habitação, educação, trabalho… tem de estar garantido, uma vez que os indivíduos, todos e qualquer um, de forma consciente não pediram para nascer, nem pediram para partilhar uma situação desfavorável em detrimento de uma favorável. A vida é gratuita e por isso não se justifica passar o tempo a trabalhar para “pagar” algo que não “encomendamos”. Mais que pensar e racionalizar é preciso transformar, não pela força, mas pela imaginação, aquilo a que chamamos mundo. A componente estética da existência passa assim a ter um papel capital na nova ordem mundial. A felicidade dos indivíduos cada vez se deve ligar mais ao seu empenho criativo do que à sua organização racional. A razão é importante, sem dúvida, mas só a criatividade nos pode “salvar”. Só a criatividade deixa o indivíduo mais perto daquilo que realmente é. Só pela criatividade nos aproximaremos da unidade. Contudo, a criatividade que assim se apresenta não é individualista nem interesseira. Fazer o que mais gostamos é a única obrigação de cada um e cada qual terá nessa meta a dimensão do mundo todo, tal como prescrevia, em forma poética Agostinho da Silva:
“De força a vida te muna
 para um humilde assumir
de alegria trina e una
de ser, saber e servir”.
Artur Manso