Da razão (agostiniana) de todos sermos UM
Na principal
apreciação de Fernando Pessoa sobre o Infante D Henrique, o português pioneiro
da globalização, escreveu que “Deus quis que a terra fosse toda uma,/ Que o mar
unisse, já não separasse” e fez questão que os executores desse trabalho fossem
os ignorantes marinheiros portugueses. Depois deles “Cumpriu-se o Mar, e o
Império se desfez.” Contudo falta, ainda, “cumprir-se Portugal”. Em tempos
recentes Agostinho da Silva quis actualizar este desiderato, alargando o
conceito de Portugal e transformando-o pela colaboração de todas as partes do
império num espaço de verdadeiro ecumenismo universal. Sem povo não há
renovação da humanidade e sem o simbolismo da criança como imperador do mundo
como descrito no Culto Popular do Espírito Santo não há verdadeiro
universalismo. Ora o espaço dos PALOP é por essência universalista e ecuménico,
pois todo o povo da língua portuguesa, nas palavras de Agostinho da Silva, é
“candidato a entender o mundo na sua plenitude, e a fazer o possível por não se
meterem em tarefas que os não divirtam” (entrev. a Carlos Vaz Marques, Fev.
1990).
No tempo em que
os Impérios acabaram e que jamais haverá condições de criar outros semelhantes,
como falar então de um espaço alargado de língua portuguesa sem reminiscências
da velha tradição imperial? Uma das formas, talvez a mais interessante, é
construir o Império da língua portuguesa assente em fundamentos estéticos que
Agostinho da Silva plasmou primeiramente na simbologia do Espírito Santo ligado
de forma particular a Portugal, mas que se encontra espalhada um pouco por todo
o mundo. Assim, as novas relações entre os PALOP deverão, mais que económicas,
ser culturais. A economia será subsidiária da cultura ao inverso do que hoje,
tal como no passado, acontece. Na época medieval, quer os Estados, quer a
Igreja, que quase sempre se confundiam, mantinham uniões através da força,
submetiam os mais fracos ao poder dos mais fortes, mas a Idade Média, pelo
forte pender estético e místico em que se encontrava submersa, fornece a
Agostinho uma ambiência de fraternidade universal que nunca mais se repetiu.
A miscigenação
era vista por Agostinho da Silva como um suporte da universalidade tão
apregoada mas sempre tão afastada do quotidiano dos povos. Com ela procedeu-se
à complementaridade de culturas por uma espécie de laços de sangue que
aumentaram as capacidades humanas em prol do bem comum. O Brasil no espaço dos
PALOP é onde a miscigenação mais influência teve no aparecimento de uma nova
maneira de ser Português e Universal. O Brasil fornecia a Agostinho um bom
modelo de futuro aos PALOP e ao mundo por aí se ter criado uma comunidade
fundada “Na convivência humana […] na fraternidade e não sobre a lei, sobre a
liturgia e não sobre a conquista, sobre o predomínio da vontade de deus e não
sobre o predomínio da vontade do homem” (Agostinho da Silva, A cultura brasileira).
A criança era
para Agostinho o melhor que o mundo tinha e a poesia mais pura teria de servir
as características que distinguem a infância. Desta forma, todos os indivíduos
em qualquer idade têm o dever de voltar a ser crianças, de orientar a sua vida
pelo gratuito, em liberdade plena. O mundo e a vida é marcada pelo imprevisível
e por isso todos nós temos que orientar as nossas energias para aquilo que
ainda não existe. O dever de todo o homem é “ser um poeta à solta” com a
capacidade sempre actuante de sobrepor a imaginação à razão, onde o Ser passe a
prevalecer sobre o ter. Contudo, realisticamente, o individuo só pode ser poeta
e andar por aí à solta quando tiver resolvido, na organização social, o
problema da fome, o problema da saúde, o problema da higiene e da habitação, o
problema do trabalho. Só depois de cumpridos estes desideratos, cada um, em
consciência, pode renunciar àquilo que à partida já possui, e não o inverso.
Viver de forma
autêntica é viver livre das escolhas do ter. Aquilo que é básico para a vida,
saúde, habitação, educação, trabalho… tem de estar garantido, uma vez que os
indivíduos, todos e qualquer um, de forma consciente não pediram para nascer,
nem pediram para partilhar uma situação desfavorável em detrimento de uma
favorável. A vida é gratuita e por isso não se justifica passar o tempo a
trabalhar para “pagar” algo que não “encomendamos”. Mais que pensar e racionalizar
é preciso transformar, não pela força, mas pela imaginação, aquilo a que
chamamos mundo. A componente estética da existência passa assim a ter um papel
capital na nova ordem mundial. A felicidade dos indivíduos cada vez se deve
ligar mais ao seu empenho criativo do que à sua organização racional. A razão é
importante, sem dúvida, mas só a criatividade nos pode “salvar”. Só a
criatividade deixa o indivíduo mais perto daquilo que realmente é. Só pela
criatividade nos aproximaremos da unidade. Contudo, a criatividade que assim se
apresenta não é individualista nem interesseira. Fazer o que mais gostamos é a
única obrigação de cada um e cada qual terá nessa meta a dimensão do mundo
todo, tal como prescrevia, em forma poética Agostinho da Silva:
“De força a vida te muna
para um humilde assumir
de alegria trina e una
de ser, saber e servir”.
Artur
Manso