Três livros, uma história comum. Exercício criativo de Ana Catarina Manso
"Porto, 1 de Junho de 2015
Prezado Retrato do Excelentíssimo
Senhor Dorian Gray,
Gostaria de iniciar esta missiva, dando-lhe a conhecer um pouco de mim.
Sou Liesel Meminger, protagonista da obra A
rapariga que roubava livros, de Markus Zuzak. Certa de que nenhum dos seus
amigos teve a oportunidade de lhe aconselhar as páginas da minha vida, creio
ser importante referir que sou apaixonada pela literatura. Como costumo
afirmar, quando se fecha um livro, abre-se a vida, portanto, caso estes
desaparecessem, o Homem também não sobreviveria, pois não teria um arrimo
estável e seguro em que se apoiar nos momentos de tempestades; não teria uma
janela através da qual se poderia evadir para a infinidade enigmática dos
formatos das nuvens; não teria um Mestre para lhe dar os mais proveitosos
conselhos; não teria a Lua, o Sol, o mar e as estrelas. Como tal, sinto que ler
é um exercício para a alma, que a faz desenvolver-se progressivamente. Sou,
ainda, uma menina destemida, lutadora e sensível, essencialmente devido à força
que os livros exercem no meu interior.
Quanto aos meus traços físicos,
não precisa de os conhecer. Já tem em si toda a beleza do mundo, a formusura do
jovem Dorian Gray, apenas precisa de purificar a sua alma. E é precisamente
devido à razão acabada de mencionar que lhe escrevo esta epístola. Os quadros
também têm alma, e a sua corresponde à do fútil e ignóbil moço que conquistou
todas as damas do século XIX pela sua beleza estonteante. Sinto, assim, que o
seu espírito necessita de sofrer uma metamorfose, de se renovar como eu sempre
me transformo quando me deixo envolver pela magia dos livros.
Deste modo,
gostaria de lhe falar um pouco acerca da última obra que li: O deus das moscas. Esta narrativa
remete-nos para a história de alguns rapazes ingleses que sobrevivem à queda de
um avião. Encontrando-se numa ilha deserta, têm que se organizar e orientar por
regras de forma a que consigam obter alimento e, simultaneamente, procurar a
saída para o problema com que se encontram confrontados. No entanto, tal como
Dorian Gray, deixam-se levar pelo caminho da disputa e da morte, que, não só os
conduz à perda de valores, como também os afasta da “chave” de saída, uma vez que
se dividem em dois grupos que se guerreiam. Assim, presos numa ilha deserta,
acabam por matar, primeiro, Simão, um rapaz inocente e, seguidamente, o Bucha,
um menino descriminado pelo seu aspeto físico. O protagonista é capaz de
esquecer o medo, a fome e a sede e, tornando-se o próprio medo, medo
desesperançado em pés que voam, acaba por ser surpreendido com o oficial que
surge no seu caminho para o proteger de quem o queria ferir.
Todos no meio de
impetuosas tempestades interiores, acabam por perceber, que, como Rafael
afirmava, “O medo não pode ferir mais do que um sonho”. Assim, mesmo no meio de
um apavorante ambiente de violência e crueldade, caindo em si, assustam-se com
as suas próprias atitudes e arrependem-se de todos os atos praticados. Rafael,
rodeado pelas chamas flamejantes dos seus inimigos, acaba por perder todos os
seus amigos e cair nas mãos dos adversários que o pretendem matar, correndo
desalmadamente atrás dele. Consequentemente, tal como Dorian Gray, os rapazes
que guerreiam o grupo de Rafael, perdem a sua alma face à situação em que se
encontram, deixando a sua humanidade para trás. No entanto, são capazes de a
recuperar aquando do desenlace da obra, pois choram de arrependimento. Deste
modo, também Dorian cai em si e, consciente que a desgraça o segue quer para
onde ele vá, termina a sua vida de criminalidade, e parte para uma outra em que
a sua alma aprenderá a ser pura e bondosa. No entanto, para tal, o rapaz teve
que deixar as imperfeições da passagem dos anos aflorar à sua pele, para que o
seu interior se pudesse purificar. O eterno Dorian Gray, pôs termo à sua
beleza, mas prevalece, vivendo no seu retrato. Portanto, o retrato de Dorian
Gray não pode, de novo, tornar-se repugnante e hediondo, é necessário pôr os
olhos nos meninos e deixar as lágrimas escorregar pelos olhos, límpidas e
sinceras, para que, quando a última cair, a dor desapareça, ficando no seu
lugar uma caixinha com um pozinho mágico que, aos poucos, vá escorregando para
o espírito do jovem, ajustando os seus valores, alterando o seu modo de pensar
e agir.
Na verdade, também
Dorian Gray foi um Deus das Moscas, uma vez que, apesar de todos ficaram
deslumbrados com a sua beleza física, atrás dela estava o mais indigno,
repugnante, fútil e hediondo. No entanto, Dorian Gray vive ainda atrás da sua
tela, e terá a eternidade para purificar o seu espírito. Todos nós somos uma
lua e temos uma fase escura que nunca mostramos a ninguém, mas, pouco a pouco,
é necessário deixar a luz do dia preencher a escuridão. Na verdade, a alma é
algo que o fogo não pode destruir; que as águas não podem maltratar; que o
vento do meio-dia não pode secar. Somente vencendo o fogo, a água e o vento é
que conseguirá modificar o seu espírito. Os rapazes, presos numa ilha deserta,
apesar de praticarem atos cruéis, criam laços de amizade entre si, protegendo e
zelando pela segurança dos seus companheiros. Mesmo PRESOS numa ilha deserta, são
capazes de ver as FLORES DA ESPERANÇA
nascer, as quais lhes dão alento e, confiantes, nunca desistem de encontrar uma
saída. De um modo idêntico, em Dorian Gray, cuja alma hedionda se encontra PRESA
num quadro, nascem as FLORES DO ARREPENDIMENTO,
sendo elas a chave que abre qualquer fechadura. Igualmente, eu, Liesel
Meminger, PRESA numa cave sombria, em plena Segunda Guerra Mundial, assisti
ao desabrochar das FLORES DA AMIZADE, uma
vez que tive a oportunidade de conhecer Max, um judeu que se refugiou na minha
cave por forma a sobreviver às perseguições Nazis e que, pouco a pouco, se foi
tornando no meu grande e fiel amigo. No entanto, todos conseguimos encontrar a SAÍDA para as nossas prisões. Os rapazes são
salvos por um oficial que lhes abre caminho para a civilização; o Senhor Dorian
Gray acaba com a sua vida de criminalidade, destruindo a sua alma ignóbil para
que, numa outra vida, possa renovar o seu espírito; eu, Liesel Meminger,
encontro Max, recuperando a alegria que
no meu coração faltava. Deste modo, todos conseguimos escapar das nossas
GAIOLAS, alcançando a liberdade. A
propósito, vou aqui deixar as sensatas palavras de Miguel Torga que mostra,
precisamente, que a liberdade depende somente do nosso desejo de a atingir.
Conquista
Livre
não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Vamos agora viajar um
pouco pelos caminhos de A rapariga que
roubava livros. Markus Zuzak conta-nos a minha história, a história de
Liesel Meminger. Fui entregue pela minha própria mãe a uma família de
acolhimento alemã no decorrer da Segunda Guerra Mundial, após uma longa viagem
de comboio em que o meu irmão não conseguiu resistir ao frio que se fazia
sentir. A sua pele pálida, os seus olhos de um azul profundo imóveis, os seus
lábios rosados preenchem muitas das minhas noites.
Privada de quase tudo, aprendi a ler nos
livros que, ainda fumegantes, roubava das fogueiras nas praças públicas, os
quais me permitiam refugiar-me da dor que sentia ao assistir às perseguições a
comunistas, como aos meus pais inocentes, a judeus, como ao meu amigo Max, e a
todas as vozes que deixassem transparecer sombra pelas ideias e atitudes nazis,
nomeadamente ao meu querido pai de acolhimento, Hans Hubberman.
Pude saborear o gosto de verdadeiras amizades
e, até, do amor a despontar, como uma rosa na primavera. Rudy era um menino com
os cabelos cor de limão e os olhos de um verde garrido e brilhante, que irei
sempre relembrar. Foi o meu primeiro amigo e a minha primeira paixão, com quem
passei os meus dias, brincando na neve gélida.
As
palavras tornavam-me mais forte e destemida para seguir em frente e apagar o
lume que caia do céu e originava um arrepiante e avassalador caos. Será que fui
capaz de as organizar de forma a construir uma história feliz?
A verdade é que, certo dia, quando Max já
tinha partido para Dachau, encontrava-me na cave onde, outrora, com ele tinha
passado os meus dias, envolta numa história acerca de um marinheiro que
descrevia a vida como sendo um bacalhau, algo realmente valioso e com um sabor
maravilhoso, quando, de súbito, ouvi um enorme estrondo. Lembro-me de ter
tentado ir ter com o papá, mas nas escadas uma enorme labareda cintilante
impossibilitou o meu caminho, por isso, limitei-me a tapar os ouvidos com as
mãos. Fosse aquilo o que fosse, pressenti que era o fim da minha vida naquela
casa. Senti o meu rosto ficar húmido com as límpidas e sentidas lágrimas que me
iam escorregando pelas faces, até que perdi os sentidos. No dia seguinte,
acordei rodeada por cadáveres das pessoas que tanto amei. Primeiro deparei-me
com uns cabelos grisalhos amarrados num puxo desajeitado. Era a mamã, com as
mãos rugosas juntas ao peito, dormindo profundamente. Tentei acordá-la, mas as
suas pálpebras mantiveram-se imóveis. Senti um nó na garganta e surpreendi-me
com os meus próprios gritos de aflição. Nunca pensara que a minha voz suave
fosse possível de produzir sons guturais, desumanos. Deixei-me cair ao lado da
mamã e murmurei ao seu ouvido tudo aquilo que precisava de lhe dizer antes de a
deixar para trás. Toquei no seu rosto áspero e pude sentir o seu coração mais
macio do que nunca. De seguida, levantei-me, olhei de novo para trás e segui em
frente, procurando o papá e Rudy. De súbito, senti-me tropeçar numas mãos, mãos
que nunca haveria de esquecer. Os dedos estreitos e compridos que se haviam
entrelaçado nos meus, vezes sem conta. Era o papá, com os olhos fechados,
envolto num sono profundo. Desta vez, deitei-me a seu lado esperando ouvir o
bater tranquilizante do seu coração. Mas nada. A dor intensificou-se, senti uma
espada trespassar-me todo o corpo. Ele não estava só a dormir. Nem ele, nem a
mamã. Atirei-me para ele, tentando realizar as complexas manobras que os
médicos executam para reactivar o batimento cardíaco, mas o corpo mantinha-se
imóvel. Hans não respirava, estava morto. Eu também não sentia a minha
respiração, apenas sentia uma dor no peito que me impedia de mover, mas tinha
que ir à procura de Rudy, ele devia estar a precisar de mim. Fiz uma festinha
nos cabelos grisalhos do meu eterno papá, e segui caminho, por entre milhares
de corpos. Rudy. Avistei-o, deitado no chão, a alguns metros de distância.
Deveria estar a brincar comigo, a fazer-se de morto para conseguir o beijo que
nunca lhe havia dado. Corri, tão rápido quanto me foi possível até atingir
aquele menino com pouco mais de um metro de altura. De olhos bem abertos, que
transpareciam o profundo azul do oceano e peito imóvel não aparentava estar
vivo, mas a qualquer momento ele iria acordar. Ele tinha que acordar. Deitei-me
a seu lado durante um longo momento, até que um homem de meia-idade, com um ar
pálido e taciturno me estendeu a mão. Não, eu não iria embora dali sem Rudy,
tínhamos que esperar por que ele acordasse. De súbito, vi chegar uma série de
médicos que colocaram o meu grande amigo numa maca e começaram a levá-lo para
longe de mim. Que é que eles pensavam que estavam a fazer? Rudy iria acordar e
eu queria ser a primeira pessoa que ele visse. Eu precisava daquele menino mais
do que nunca, e, de súbito, o meu mundo caiu, e nada o iria conseguir erguer de
novo. “Ele está morto”, lembro-me de ouvir um médico com uma bata suja dizer.
Recordo-me absolutamente da minha
reacção a essas palavras. Ri-me, ri-me durante uns segundos, para não chorar. E
quando comecei a sentir o rosto ficar humedecido, soltando terríveis gritos de
dor, o general estendeu-me a mão. Tinha que sair dali, não aguentava mais olhar
para as pessoas que mais amava e que, de repente, me haviam deixado sozinha.
Aquilo tinha que ser um assombroso pesadelo do qual, mais cedo ou mais tarde,
iria acordar. Naquele momento, soube que havia uma última coisa a fazer, antes
de abandonar aquele local, recheado de cadáveres sobre os quais se erguiam
olhos profundamente tristes. Inclinei-me para Rudy e deixei os meus lábios
roçar nos seus, sussurrando-lhe ao ouvido as palavras que me surgiram no
momento. O beijo que ele sempre me pedira, havia-lhe sido, finalmente,
entregue. Seguidamente, segui com o general, apertando a sua mão com força como
se assim a dor que sentia diminuísse. Agora, passaremos à frente a mágoa,
avançarei um pouco na história da minha vida. Passei a viver em casa do
Presidente da Câmara, que possuía uma enorme biblioteca nas quais passavam os
meus dias, subindo a montanhas, mergulhando em inauditas águas misteriosas,
voando pelos céus. Até que, certo dia, pude realmente sentir-me de novo feliz.
Estava na loja do pai do Rudy, a conversar com o pobre homem que perdera toda a
sua família quando se encontrava na guerra, até que, de súbito, alguém que
nunca seria capaz de esquecer, abriu a porta e, com um enorme sorriso no rosto,
correu até mim, abraçando-me. Nesse momento, pude, finalmente, sentir-me feliz
nos seus braços. Deixei todas as lágrimas que estava a aguentar cair, mas nesse
momento, já não eram apenas lágrimas de tristeza. Eram essencialmente de
felicidade, pois fora capaz de recuperar Max, o meu eterno amigo.
Assim, prezado retrato do Senhor Dorian Gray,
pretendo mostrar-lhe que, mesmo quando nos sentimos verdadeiramente perdidos,
acaba sempre por surgir uma bússola que nos orienta e leva a atingir a
felicidade. Nada é impossível, por isso, abro-lhe agora caminho para alterar a
sua alma, pois temos, deveras, que nos tornar na mudança que queremos ver.
Aqueles que olham somente para o passado ou para o presente, irão, perder o
futuro, portanto, é necessário criar no presente aquilo que mudará o mundo no
futuro. Para que deixar para amanhã o que podemos fazer hoje? Seja a mudança
que quer ver no mundo. O jovem Dorian Gray, que vive atrás do quadro executado
por Basílio Hallward, não pode ter medo da mudança, tem é que recear que nunca
nada mude, pois estou certa de que ele será capaz de alterar a sua alma,
anteriormente imunda e repugnante, tornando o seu espírito puro e admirável.
Tenho consciência de que tenho que ser o espelho da mudança que lhe estou a
propor e, também eu, para mudar o mundo, tentarei alterar em mim aquilo que sinto
que não está tão bem. Acima de tudo, é necessário sermos amáveis, dignos de ser
amados, para que “o mundo pule e avance como bola colorida entre as mãos de uma
criança”. Veja os problemas como oportunidades para a mudança, para a renovação
interior. Exteriormente, Dorian Gray já apresenta uma beleza infinita, mas o
mais belo é distribuir felicidade por muitas pessoas.
Na verdade, quer O Deus das Moscas, quer O
Retrato de Dorian Gray foram obras que salvei das flamejantes fogueiras em
que se incineravam milhares de livros considerados impróprios para a sociedade.
Salvei estes tão grandiosos livros, como espero também salvar a alma de Dorian
Gray. “Que é que ganha ganhando o mundo todo mas perdendo a sua alma?”, Lord
Henrique, seu tão fiel amigo, colocou-lhe precisamente esta questão.
Entretanto, espero que já tenha compreendido que é mais fácil viver sem vícios
e prazeres constantes do que sem alma, uma vez que, a alma é aquilo que nos
torna humanos, que faz de nós seres únicos, capazes de experimentar diversas
emoções.
Gostaria de terminar esta missiva, dizendo
que a vida é um quadro em branco e todos nós temos a possibilidade de fazer
dela uma obra prima. O retrato é agora a casa de Dorian Gray e, certa de que o
jovem será capaz de purificar o seu espírito de forma a que o quadro não seja
apenas belo, como, acima de tudo, cristalino, em breve irei visitar Tate Modern
Museum, para que possa contemplar o novo retrato de Dorian Gray.
Subscrevo-me atenciosamente.
Com o maior respeito,
Liesel Meminger
Ana Catarina Manso - 14 anos