quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Porque é Natal


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Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que se veja à mesa o meu lugar vazio 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que só uma voz me evoque a sós consigo 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que não viva já ninguém meu conhecido 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem vivo esteja um verso deste livro 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que terei de novo o Nada a sós comigo 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem o Natal terá qualquer sentido 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal' 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

sobre a morte e o morrer
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Uma leitura das Intermitências da morte de José Saramago


“No dia seguinte, ninguém morreu”. É deste modo que José Saramago enceta esta obra em que, incompreensivelmente, com uma mudança de ano letivo, a morte cessa a sua missão de retirar a vida aos habitantes de um país. Inicialmente, estes experienciam uma sensação de puro êxtase, pois veem o facto de terem a eternidade pela frente como um verdadeiro milagre, uma autêntica dádiva de Deus. No entanto, depressa surgem implicações, entrando as estruturas sociais, políticas e religiosas em colapso.
           A sociedade começa a desmoronar-se e a sentir os efeitos negativos provenientes daquele fenómeno quimérico aparentemente utópico, nomeadamente, torna-se excessivamente doloroso para as famílias assistir ao sofrimento dos seus entes-queridos que não morrem, mas sofrem com as limitações provenientes da idade. Deste modo, surge uma organização, a Maphia, cujo objetivo é transportar indivíduos até à fronteira, para que estes possam deixar de sofrer e encontrar o seu caminho para um novo mundo.

Até que, certo dia, a morte reaparece neste país já desmoronado pela sua ausência. São enviadas cartas a anunciar aos desditosos destinatários que a sua morte se avizinha, para que possam desfrutar dos seus últimos dias. Porém, certa vez, uma das missivas, dirigida a um violoncelista, regressa às suas mãos, não sendo enviada com sucesso. A morte, perante este entrave, toma forma humana para que possa solucionar a complicação que havia surgido. Conseguirá, o violoncelista, vencer a morte? Ou, pelo contrário, será levado, como tantos outros, por ela?

TEXTO DE APRECIAÇÃO CRÍTICA

Decidi escolher esta obra, uma vez que o facto de se tratar de uma profunda reflexão acerca da vida, da morte e dos comportamentos humanos, despoletou o meu interesse. De facto, considero que estes aspetos se encontrem estritamente relacionados, pois sem vida, não haveria morte, influenciando esta, inúmeras vezes, os comportamentos humanos. Além disso, esta narrativa representou, desde o início, um verdadeiro enigma para mim, devido, essencialmente, ao título que apresenta: As intermitências da morte. Estas palavras arrebatadoras estimularam o meu interesse pela obra e fizeram nascer em mim uma enorme vontade de a desvendar.

Como já referi, considero o título de uma vasta imaginação, principalmente pelo recurso ao nome “Intermitências” que se aplica perfeitamente à obra em análise, visto que nesta a morte não revela uma atividade contínua. De facto, esta cessa a sua atividade por um período de tempo, regressando depois e, num último momento, em que seria de esperar que retirasse a vida ao violoncelista, não o faz, uma vez que compreende que se apaixonou por ele. Com efeito, a meu ver o título está deveras bem pensado, adequando-se na perfeição, pelo que não o alteraria. Do meu ponto de vista, o vermelho é o tom que melhor se identifica com a narrativa, uma vez que simboliza a paixão e a vida. Na realidade, a morte, aquando do desenlace do livro, é surpreendida pelo amor, sendo que este faz com que ela não seja capaz de retirar a vida ao violoncelista. Assim, o amor estimula-nos a dar o melhor de nós a quem amamos, pelo que a morte não é capaz de entregar a carta com a respetiva sentença de morte ao violoncelista. Simultaneamente, a morte, quando se apaixona, sente-se mais viva do que nunca e, finalmente, é capaz de experienciar a felicidade que o amor correspondido proporciona.

Esta obra mostrou-me que a morte é um verdadeiro mal necessário, uma vez que, na sua ausência, a sociedade se desmorona em múltiplos aspetos, nomeadamente na religião, pois “Sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há igreja”. Sendo assim, apesar de a morte ser, aparentemente, cruel e impiedosa, na verdade, é uma consequência natural da vida, sendo que a sua ausência faria diversas estruturas sociais entrar em colapso, trazendo, portanto, inúmeros inconvenientes para nós.

Para além disso, com esta narrativa aprendi que o poder do amor nos transforma por completo. Na verdade, a morte, quando se apaixonou pelo violoncelista, sentindo-se motivada a dar o melhor de si, mudou radicalmente: deixou de ser cruel, vil e vingativa, e passou a ser bondosa e tranquila. Daí a obra acabar precisamente da maneira como começa: “No dia seguinte ninguém morreu”. Assim, o poder do amor é bem mais forte do que o da morte, pelo que o devemos conservar intacto no nosso interior.

Pude também constatar que a morte é, decerto, o maior mistério da existência humana e assim permanecerá. Na verdade, ninguém tem conhecimento acerca desta, apenas vivendo a morte dos outros. No entanto, “Cada um de nós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-lhe, tu pertences-lhe”.

            Percebi, ainda, que as palavras são meras designações de que dispomos para nos referirmos aos objetos ou seres que nos rodeiam. Assim sendo, as palavras são deveras importantes na comunicação. No entanto, tendem a ser demasiado vagas, referindo algo sobre o qual há muito mais a dizer do que simplesmente o que a palavra transparece (“As palavras são rótulos que se pegam às coisas, não são as coisas, nunca saberás como são as coisas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste”). Deste modo, temos que interpretar sempre os múltiplos sentidos das palavras, para que, vistas de diversas perspetivas, lhes saibamos atribuir a devida importância.

            Por fim, a frase “A morte, sozinha, sem qualquer causa externa, sempre matou muito menos que o homem.” fez-me refletir verdadeiramente. De facto, apesar de muitas vezes, a morte levar as pessoas consigo, injusta e inesperadamente, o Homem sempre se revelou cruel, em toda a história da humanidade. A título de exemplo, destaco a Segunda Guerra Mundial, em que os judeus eram fuzilados e mortos sem piedade e a atual situação dos refugiados, que deixam o seu país, o seu lar, e partem para o desconhecido, sem quaisquer garantias. Muitos deles perdem familiares e amigos pelo caminho e, mesmo assim, têm que seguir em frente. Não podem parar, porque todos os segundos contam.

            Considero que me identifico um pouco com o violoncelista pelo qual a morte se acaba por apaixonar, uma vez que este se trata de uma pessoa humilde, simples e que não se conhece verdadeiramente, utilizando a música como refúgio para a sua solidão. De um modo idêntico, sinto que ainda estou a descobrir quem realmente sou e por que caminho quero enveredar de modo a que o meu futuro seja o que idealizo e com que sonho desde sempre.

 Quanto ao léxico, Saramago utiliza um vocabulário eloquente e rico, estando presentes alguns arcaísmos que, a meu ver, enriquecem a obra, pois mostram que o autor é uma pessoa que tem uma paixão pelas palavras e tenta empregar as mais variadas.

Aconselharia esta obra a todos aqueles que se gostam de deixar envolver em leituras fortes que veiculem autênticos valores, para que compreendem que o poder do amor é invencível, nem sendo capaz a própria morte de lhe resistir. O amor muda-nos por completo, transformando-nos, tal como a leitura, que nos faz ver mais longe e entender os significados ocultos de todas atitudes e palavras. Sendo assim, considero que este êxito de Saramago deveria ser lido por todas as pessoas corajosas e intrépidas, pois esta obra é, deveras, forte e tem que ser interpretada com garra e ousadia.

A meu ver, o poema “A morte chega cedo” da autoria de Fernando Pessoa espelha a mensagem desta narrativa, visto que mostra que a morte é algo incontornável, da qual não nos podemos esconder, pois ela encontrará sempre o caminho até nós. Simultaneamente, o poema revela que não podemos tentar prever o nosso destino, uma vez que este já está traçado desde que nascemos. Deste modo, a morte é algo vago, que ninguém é capaz de compreender verdadeiramente, pelo que apenas nos resta aceitar o destino que Deus preparou para nós e aproveitar ao máximo tudo o que a vida nos oferece.

A Morte Chega Cedo

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.


Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'
Ana Catarina Manso - 14 anos

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

instruir e libertar



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Joseph Jacotot (1770-1840) previa no seu método para a emancipação intelectual, como escreve Jacques Rancière no ensaio que lhe dedicou O mestre ignorante - ed. portuguesa Pedago - o seguinte resposta que terá dado a M. Banhe Ministro da Instrução pública quando, expressamente, o consultou: "O que é preciso, pra organizar a instrução que o governo deve ao povo e que pretende fornecer sobre os melhores métodos?" Terá respondido Jacotot: "Nada, o governo não deve instrução ao povo, pela simples razão de que não se deve dar às pessoas aquilo que elas podem conquistar por si próprias. Ora, a instrução é com a liberdade: não se concede, conquista-se". 
Estávamos na primeira parte do século XIX, mas mesmo que ainda não se avistassem as políticas educativas libertárias nem tão pouco as emancipadoras de que o grande expoente é Paulo Freire (1921-1997), temos aqui o percursor no qual o universalismo educativo dos estados democráticos na actualidade, na ansia de formar os cidadãos, poderiam colher bons conselhos, nomeadamente: que a instrução não se deve tornar obrigação, mas sim desejo; que não deve servir para ganhar a vida mas sim para viver a vida; que não deve ser considerada como ofício, mas sim como brincadeira, que não deve ser obrigatória, mas livre.  
Aprender com os antigos é sempre o melhor remédio.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Quando muitos perdedores se dizem vencedores

O cartaz da JSD que está a causar polémica nas redes sociais

Ora aqui está para quem canta tanta vitória em nome da democracia um excerto de um texto de J J Rousseau (1712-1778) um dos teóricos desta democracia que sobre a conformação da vontade individual à vontade geral, diz: “como pode um homem ser livre e ao mesmo tempo ter de conformar-se com vontades que não são as suas? A isto respondo que o problema está mal colocado. O cidadão aprova todas as leis, aquelas que não obtiverem o seu acordo e até as que o punem se não as respeitar. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral; é devido a ela que são cidadãos e livres. Quando se propõe uma lei, o que se pede a cada um não é que a aprove ou a rejeite, mas se está ou não conforme a vontade geral, que é também a sua: cada cidadão ao entregar o seu voto, dá assim a sua opinião e, pela contagem dos votos, se exprime a vontade geral. Quando vence a opinião contrária à minha só isso prova que eu estava enganado e que o que eu considerava como sendo a vontade geral, não o era afinal” (Contrato social).

Ora, não há nada como ler as fontes e aprender com os melhores

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Um sentimento intrigante


Natureza vs Cultura


Baudelaire (1821-1867) em O pintor da vida moderna contesta a ideia do séc XVIII relativa à moral, criticando o facto de nesse século a natureza ter sido tomada como base, fonte e modelo de todo o bem e de toda a beleza pois considera que "A natureza não ensina nada. ela constrange o homem a comer, beber e dormir.
Leva o homem a matar o seu semelhante, a comê-lo, a sequestrá-lo, a torturá-lo. A natureza aconselha ao crime: criou o parricídio, a antropofagia e outras abominações. A natureza - que é a voz do nosso interesse - ordena-nos que abatamos os pobres e desprezemos os enfermos. Na natureza apenas há atrocidades. O crime é natural, o mal faz-se naturalmente".
Mas diz mais: "É a filosofia e a religião - que não são naturais mas 'construções humanas' -, que nos ordenam que alimentemos os parentes pobres e tomemos conta dos enfermos. ambas - filosofia e religião - promovem a virtude. o bem é fruto de uma Arte".
Terá ou não razão. Mas a sua reflexão está mais perto do natural decurso da existência do que a de Rousseau (1712-1778) que sonhava com o tal estado da natureza habitado pelo bom selvagem. Convém dizer que do primeiro apenas se ouve falar e o segundo não deixou rasto.  

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A Criação do Homem



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Conta-se, conta o povo que
Deus criou o burro e disse: Obedecerás ao homem. carregarás fardos pesados nas costas e viverás trinta anos. Serás BURRO.
O burro disse: Senhor, ser burro, obedecer ao homem, carregar fardos nas costas e viver trinta anos? É muito Senhor. Bastam-me apenas dez anos.

Deus criou o cachorro e disse: Comerás o Osso que te jogarem ao chão, tomarás conta da casa do homem e viverás vinte anos. Serás CACHORRO.
O cachorro disse: é muito Senhor. Bastam-me dez anos.

Deus criou o macaco e disse: Pularás de galho em galho, farás macaquices e viverás trinta anos. serás MACACO.
O macaco disse: Senhor pular de galho em galho, fazer macaquices e viver trinta anos? é muito Senhor, bastam-me vinte anos.

Deus criou o Homem e disse: Serás o rei dos animais. dominarás o mundo. serás inteligente. Viverás trinta anos.
O Homem disse: É muito pouco senhor! vinte anos que o burro não quis, dez que o macaco recusou e dez que o cachorro não está querendo, dai-mos a mim Senhor, para que eu viva pelo menos serenta anos.
E Deus atendeu o homem: Até aos trinta anos o homem vive a vida que Deus lhe deu: é HOMEM.
Dos trinta aos cinquenta anos, o homem casa e carrega os fardos nas costas para sustentar a família: é BURRO.
Dos cinquenta aos sessenta anos, já cansado, passa a tomar conta da sua casa: é CACHORRO.
Dos sessenta aos setenta anos, mais cansado ainda, passa a viver aqui e ali, na casa de um filho ou de outro, e faz gracinhas para as crianças se rirem: é MACACO.

Tem ou não tem razão o Povo?


sábado, 5 de setembro de 2015

da inútil utilidade do pensamento


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Aqui está Kierkegaard um filósofo fantástico que melhor pode ajudar a compreender o tempo presente.
Pensar e ser, compreender e inteligir, são actividades indissolúveis que só o paradoxo pode comportar e sem o paradoxo, a realidade será ininteligível.
Fernando Pessoa diz exactamente o mesmo e explicita-o na melhor poesia do mundo.

sábado, 30 de maio de 2015

Voltar ao lugar de onde se procedeu



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Aqui fica um belo poema sobre a Redenção ou do encontro de cada um com a parte que lhe cabe no Todo.

Redenção

I
Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!

II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.

Antero de Quental

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Da beleza da(s) leitura(s)



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Três livros, uma história comum. Exercício criativo de Ana Catarina Manso




"Porto, 1 de Junho de 2015


 


Prezado Retrato do Excelentíssimo Senhor Dorian Gray,


 


Gostaria de iniciar esta missiva, dando-lhe a conhecer um pouco de mim. Sou Liesel Meminger, protagonista da obra A rapariga que roubava livros, de Markus Zuzak. Certa de que nenhum dos seus amigos teve a oportunidade de lhe aconselhar as páginas da minha vida, creio ser importante referir que sou apaixonada pela literatura. Como costumo afirmar, quando se fecha um livro, abre-se a vida, portanto, caso estes desaparecessem, o Homem também não sobreviveria, pois não teria um arrimo estável e seguro em que se apoiar nos momentos de tempestades; não teria uma janela através da qual se poderia evadir para a infinidade enigmática dos formatos das nuvens; não teria um Mestre para lhe dar os mais proveitosos conselhos; não teria a Lua, o Sol, o mar e as estrelas. Como tal, sinto que ler é um exercício para a alma, que a faz desenvolver-se progressivamente. Sou, ainda, uma menina destemida, lutadora e sensível, essencialmente devido à força que os livros exercem no meu interior.


 Quanto aos meus traços físicos, não precisa de os conhecer. Já tem em si toda a beleza do mundo, a formusura do jovem Dorian Gray, apenas precisa de purificar a sua alma. E é precisamente devido à razão acabada de mencionar que lhe escrevo esta epístola. Os quadros também têm alma, e a sua corresponde à do fútil e ignóbil moço que conquistou todas as damas do século XIX pela sua beleza estonteante. Sinto, assim, que o seu espírito necessita de sofrer uma metamorfose, de se renovar como eu sempre me transformo quando me deixo envolver pela magia dos livros.


Deste modo, gostaria de lhe falar um pouco acerca da última obra que li: O deus das moscas. Esta narrativa remete-nos para a história de alguns rapazes ingleses que sobrevivem à queda de um avião. Encontrando-se numa ilha deserta, têm que se organizar e orientar por regras de forma a que consigam obter alimento e, simultaneamente, procurar a saída para o problema com que se encontram confrontados. No entanto, tal como Dorian Gray, deixam-se levar pelo caminho da disputa e da morte, que, não só os conduz à perda de valores, como também os afasta da “chave” de saída, uma vez que se dividem em dois grupos que se guerreiam. Assim, presos numa ilha deserta, acabam por matar, primeiro, Simão, um rapaz inocente e, seguidamente, o Bucha, um menino descriminado pelo seu aspeto físico. O protagonista é capaz de esquecer o medo, a fome e a sede e, tornando-se o próprio medo, medo desesperançado em pés que voam, acaba por ser surpreendido com o oficial que surge no seu caminho para o proteger de quem o queria ferir.


Todos no meio de impetuosas tempestades interiores, acabam por perceber, que, como Rafael afirmava, “O medo não pode ferir mais do que um sonho”. Assim, mesmo no meio de um apavorante ambiente de violência e crueldade, caindo em si, assustam-se com as suas próprias atitudes e arrependem-se de todos os atos praticados. Rafael, rodeado pelas chamas flamejantes dos seus inimigos, acaba por perder todos os seus amigos e cair nas mãos dos adversários que o pretendem matar, correndo desalmadamente atrás dele. Consequentemente, tal como Dorian Gray, os rapazes que guerreiam o grupo de Rafael, perdem a sua alma face à situação em que se encontram, deixando a sua humanidade para trás. No entanto, são capazes de a recuperar aquando do desenlace da obra, pois choram de arrependimento. Deste modo, também Dorian cai em si e, consciente que a desgraça o segue quer para onde ele vá, termina a sua vida de criminalidade, e parte para uma outra em que a sua alma aprenderá a ser pura e bondosa. No entanto, para tal, o rapaz teve que deixar as imperfeições da passagem dos anos aflorar à sua pele, para que o seu interior se pudesse purificar. O eterno Dorian Gray, pôs termo à sua beleza, mas prevalece, vivendo no seu retrato. Portanto, o retrato de Dorian Gray não pode, de novo, tornar-se repugnante e hediondo, é necessário pôr os olhos nos meninos e deixar as lágrimas escorregar pelos olhos, límpidas e sinceras, para que, quando a última cair, a dor desapareça, ficando no seu lugar uma caixinha com um pozinho mágico que, aos poucos, vá escorregando para o espírito do jovem, ajustando os seus valores, alterando o seu modo de pensar e agir.


Na verdade, também Dorian Gray foi um Deus das Moscas, uma vez que, apesar de todos ficaram deslumbrados com a sua beleza física, atrás dela estava o mais indigno, repugnante, fútil e hediondo. No entanto, Dorian Gray vive ainda atrás da sua tela, e terá a eternidade para purificar o seu espírito. Todos nós somos uma lua e temos uma fase escura que nunca mostramos a ninguém, mas, pouco a pouco, é necessário deixar a luz do dia preencher a escuridão. Na verdade, a alma é algo que o fogo não pode destruir; que as águas não podem maltratar; que o vento do meio-dia não pode secar. Somente vencendo o fogo, a água e o vento é que conseguirá modificar o seu espírito. Os rapazes, presos numa ilha deserta, apesar de praticarem atos cruéis, criam laços de amizade entre si, protegendo e zelando pela segurança dos seus companheiros. Mesmo PRESOS numa ilha deserta, são capazes de ver as FLORES DA ESPERANÇA nascer, as quais lhes dão alento e, confiantes, nunca desistem de encontrar uma saída. De um modo idêntico, em Dorian Gray, cuja alma hedionda se encontra PRESA num quadro, nascem as FLORES DO ARREPENDIMENTO, sendo elas a chave que abre qualquer fechadura. Igualmente, eu, Liesel Meminger, PRESA numa cave sombria, em plena Segunda Guerra Mundial, assisti ao desabrochar das FLORES DA AMIZADE, uma vez que tive a oportunidade de conhecer Max, um judeu que se refugiou na minha cave por forma a sobreviver às perseguições Nazis e que, pouco a pouco, se foi tornando no meu grande e fiel amigo. No entanto, todos conseguimos encontrar a SAÍDA para as nossas prisões. Os rapazes são salvos por um oficial que lhes abre caminho para a civilização; o Senhor Dorian Gray acaba com a sua vida de criminalidade, destruindo a sua alma ignóbil para que, numa outra vida, possa renovar o seu espírito; eu, Liesel Meminger, encontro Max, recuperando a alegria que  no meu coração faltava. Deste modo, todos conseguimos escapar das nossas GAIOLAS, alcançando a liberdade. A propósito, vou aqui deixar as sensatas palavras de Miguel Torga que mostra, precisamente, que a liberdade depende somente do nosso desejo de a atingir.


Conquista


Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua! 


            Vamos agora viajar um pouco pelos caminhos de A rapariga que roubava livros. Markus Zuzak conta-nos a minha história, a história de Liesel Meminger. Fui entregue pela minha própria mãe a uma família de acolhimento alemã no decorrer da Segunda Guerra Mundial, após uma longa viagem de comboio em que o meu irmão não conseguiu resistir ao frio que se fazia sentir. A sua pele pálida, os seus olhos de um azul profundo imóveis, os seus lábios rosados preenchem muitas das minhas noites.


 Privada de quase tudo, aprendi a ler nos livros que, ainda fumegantes, roubava das fogueiras nas praças públicas, os quais me permitiam refugiar-me da dor que sentia ao assistir às perseguições a comunistas, como aos meus pais inocentes, a judeus, como ao meu amigo Max, e a todas as vozes que deixassem transparecer sombra pelas ideias e atitudes nazis, nomeadamente ao meu querido pai de acolhimento, Hans Hubberman.


Pude saborear o gosto de verdadeiras amizades e, até, do amor a despontar, como uma rosa na primavera. Rudy era um menino com os cabelos cor de limão e os olhos de um verde garrido e brilhante, que irei sempre relembrar. Foi o meu primeiro amigo e a minha primeira paixão, com quem passei os meus dias, brincando na neve gélida.


 As palavras tornavam-me mais forte e destemida para seguir em frente e apagar o lume que caia do céu e originava um arrepiante e avassalador caos. Será que fui capaz de as organizar de forma a construir uma história feliz?


A verdade é que, certo dia, quando Max já tinha partido para Dachau, encontrava-me na cave onde, outrora, com ele tinha passado os meus dias, envolta numa história acerca de um marinheiro que descrevia a vida como sendo um bacalhau, algo realmente valioso e com um sabor maravilhoso, quando, de súbito, ouvi um enorme estrondo. Lembro-me de ter tentado ir ter com o papá, mas nas escadas uma enorme labareda cintilante impossibilitou o meu caminho, por isso, limitei-me a tapar os ouvidos com as mãos. Fosse aquilo o que fosse, pressenti que era o fim da minha vida naquela casa. Senti o meu rosto ficar húmido com as límpidas e sentidas lágrimas que me iam escorregando pelas faces, até que perdi os sentidos. No dia seguinte, acordei rodeada por cadáveres das pessoas que tanto amei. Primeiro deparei-me com uns cabelos grisalhos amarrados num puxo desajeitado. Era a mamã, com as mãos rugosas juntas ao peito, dormindo profundamente. Tentei acordá-la, mas as suas pálpebras mantiveram-se imóveis. Senti um nó na garganta e surpreendi-me com os meus próprios gritos de aflição. Nunca pensara que a minha voz suave fosse possível de produzir sons guturais, desumanos. Deixei-me cair ao lado da mamã e murmurei ao seu ouvido tudo aquilo que precisava de lhe dizer antes de a deixar para trás. Toquei no seu rosto áspero e pude sentir o seu coração mais macio do que nunca. De seguida, levantei-me, olhei de novo para trás e segui em frente, procurando o papá e Rudy. De súbito, senti-me tropeçar numas mãos, mãos que nunca haveria de esquecer. Os dedos estreitos e compridos que se haviam entrelaçado nos meus, vezes sem conta. Era o papá, com os olhos fechados, envolto num sono profundo. Desta vez, deitei-me a seu lado esperando ouvir o bater tranquilizante do seu coração. Mas nada. A dor intensificou-se, senti uma espada trespassar-me todo o corpo. Ele não estava só a dormir. Nem ele, nem a mamã. Atirei-me para ele, tentando realizar as complexas manobras que os médicos executam para reactivar o batimento cardíaco, mas o corpo mantinha-se imóvel. Hans não respirava, estava morto. Eu também não sentia a minha respiração, apenas sentia uma dor no peito que me impedia de mover, mas tinha que ir à procura de Rudy, ele devia estar a precisar de mim. Fiz uma festinha nos cabelos grisalhos do meu eterno papá, e segui caminho, por entre milhares de corpos. Rudy. Avistei-o, deitado no chão, a alguns metros de distância. Deveria estar a brincar comigo, a fazer-se de morto para conseguir o beijo que nunca lhe havia dado. Corri, tão rápido quanto me foi possível até atingir aquele menino com pouco mais de um metro de altura. De olhos bem abertos, que transpareciam o profundo azul do oceano e peito imóvel não aparentava estar vivo, mas a qualquer momento ele iria acordar. Ele tinha que acordar. Deitei-me a seu lado durante um longo momento, até que um homem de meia-idade, com um ar pálido e taciturno me estendeu a mão. Não, eu não iria embora dali sem Rudy, tínhamos que esperar por que ele acordasse. De súbito, vi chegar uma série de médicos que colocaram o meu grande amigo numa maca e começaram a levá-lo para longe de mim. Que é que eles pensavam que estavam a fazer? Rudy iria acordar e eu queria ser a primeira pessoa que ele visse. Eu precisava daquele menino mais do que nunca, e, de súbito, o meu mundo caiu, e nada o iria conseguir erguer de novo. “Ele está morto”, lembro-me de ouvir um médico com uma bata suja dizer. Recordo-me  absolutamente da minha reacção a essas palavras. Ri-me, ri-me durante uns segundos, para não chorar. E quando comecei a sentir o rosto ficar humedecido, soltando terríveis gritos de dor, o general estendeu-me a mão. Tinha que sair dali, não aguentava mais olhar para as pessoas que mais amava e que, de repente, me haviam deixado sozinha. Aquilo tinha que ser um assombroso pesadelo do qual, mais cedo ou mais tarde, iria acordar. Naquele momento, soube que havia uma última coisa a fazer, antes de abandonar aquele local, recheado de cadáveres sobre os quais se erguiam olhos profundamente tristes. Inclinei-me para Rudy e deixei os meus lábios roçar nos seus, sussurrando-lhe ao ouvido as palavras que me surgiram no momento. O beijo que ele sempre me pedira, havia-lhe sido, finalmente, entregue. Seguidamente, segui com o general, apertando a sua mão com força como se assim a dor que sentia diminuísse. Agora, passaremos à frente a mágoa, avançarei um pouco na história da minha vida. Passei a viver em casa do Presidente da Câmara, que possuía uma enorme biblioteca nas quais passavam os meus dias, subindo a montanhas, mergulhando em inauditas águas misteriosas, voando pelos céus. Até que, certo dia, pude realmente sentir-me de novo feliz. Estava na loja do pai do Rudy, a conversar com o pobre homem que perdera toda a sua família quando se encontrava na guerra, até que, de súbito, alguém que nunca seria capaz de esquecer, abriu a porta e, com um enorme sorriso no rosto, correu até mim, abraçando-me. Nesse momento, pude, finalmente, sentir-me feliz nos seus braços. Deixei todas as lágrimas que estava a aguentar cair, mas nesse momento, já não eram apenas lágrimas de tristeza. Eram essencialmente de felicidade, pois fora capaz de recuperar Max, o meu eterno amigo.


Assim, prezado retrato do Senhor Dorian Gray, pretendo mostrar-lhe que, mesmo quando nos sentimos verdadeiramente perdidos, acaba sempre por surgir uma bússola que nos orienta e leva a atingir a felicidade. Nada é impossível, por isso, abro-lhe agora caminho para alterar a sua alma, pois temos, deveras, que nos tornar na mudança que queremos ver. Aqueles que olham somente para o passado ou para o presente, irão, perder o futuro, portanto, é necessário criar no presente aquilo que mudará o mundo no futuro. Para que deixar para amanhã o que podemos fazer hoje? Seja a mudança que quer ver no mundo. O jovem Dorian Gray, que vive atrás do quadro executado por Basílio Hallward, não pode ter medo da mudança, tem é que recear que nunca nada mude, pois estou certa de que ele será capaz de alterar a sua alma, anteriormente imunda e repugnante, tornando o seu espírito puro e admirável. Tenho consciência de que tenho que ser o espelho da mudança que lhe estou a propor e, também eu, para mudar o mundo, tentarei alterar em mim aquilo que sinto que não está tão bem. Acima de tudo, é necessário sermos amáveis, dignos de ser amados, para que “o mundo pule e avance como bola colorida entre as mãos de uma criança”. Veja os problemas como oportunidades para a mudança, para a renovação interior. Exteriormente, Dorian Gray já apresenta uma beleza infinita, mas o mais belo é distribuir felicidade por muitas pessoas.


Na verdade, quer O Deus das Moscas, quer O Retrato de Dorian Gray foram obras que salvei das flamejantes fogueiras em que se incineravam milhares de livros considerados impróprios para a sociedade. Salvei estes tão grandiosos livros, como espero também salvar a alma de Dorian Gray. “Que é que ganha ganhando o mundo todo mas perdendo a sua alma?”, Lord Henrique, seu tão fiel amigo, colocou-lhe precisamente esta questão. Entretanto, espero que já tenha compreendido que é mais fácil viver sem vícios e prazeres constantes do que sem alma, uma vez que, a alma é aquilo que nos torna humanos, que faz de nós seres únicos, capazes de experimentar diversas emoções.


Gostaria de terminar esta missiva, dizendo que a vida é um quadro em branco e todos nós temos a possibilidade de fazer dela uma obra prima. O retrato é agora a casa de Dorian Gray e, certa de que o jovem será capaz de purificar o seu espírito de forma a que o quadro não seja apenas belo, como, acima de tudo, cristalino, em breve irei visitar Tate Modern Museum, para que possa contemplar o novo retrato de Dorian Gray.


Subscrevo-me atenciosamente.


Com o maior respeito,
            Liesel Meminger


Ana Catarina Manso - 14 anos