domingo, 17 de julho de 2011

sobre Deus e sobre os homens

Aquando da publicação do livro de José Saramago intitulado Caim e das declarações proferidas pelo seu autor acerca do Deus do Antigo Testamento, gerou-se na sociedade portuguesa um mau estar entre crentes e ateus.
Da minha parte, enquanto crente, não quero contribuir para essa cisão, tanto mais que considero que ser crente ou ateu são duas maneiras de manifestar uma fé intensa: os primeiros na existência de um Ser transcendente; os segundos na não existência nesse mesmo Ser e, desta forma, a afirmação da vontade de uns e outros acaba por coincidir.
Como leitor dos textos bíblicos, embora sem qualquer formação teológica, também tenho feito alguma interpretação livre dos mesmos. As imagens de Caim e Abel, Sodoma e Gomorra, o Dilúvio, o livro de Job… prestam-se a uma diversidade de interpretações. Da controvérsia gerada pelo sr Saramago, aqueles que a justificam e aqueles que se lhe opõem, parece-me que se afastam do essencial. Essa imagem de Deus, que se apresenta como cruel e vingativo, inimigo primeiro do seu povo, não corresponde à verdade. Nem sequer na leitura mais literal dos escritos sagrados.
Nas interpretações que têm surgido falta realçar o mais importante: Deus criou o homem como um igual e dotou-o de total Liberdade. Os maus costumes não são obra de Deus mas sim do livre arbítrio de que os homens foram dotados desde a sua origem. O Antigo Testamento é a história de um povo que só se lembra de Deus quando está em apuros, que, no essencial coincide com a história da Humanidade. O mal ou o bem que cada um fizer só a si lhe diz respeito, não provém da vontade de Deus. Nós humanos, ciosos da individualidade que nos constitui, fomo-nos afastando uns dos outros e convocando Deus apenas e só para os nossos interesses individuais. Perdemos a noção de Comunidade e de Igreja e servimo-nos dessas referências apenas para intercedermos pelos interesses próprios.
No primeiro livro da Bíblia fica bem marcada essa liberdade que é dada ao homem. Vejamos alguns exemplos. Deus disse a Adão e Eva para não comerem o fruto da árvore proibida e quando o fizeram, Deus, ao visitá-los no Éden chama por Adão que está escondido e este diz-lhe que se escondeu porque estava nu, ao que Deus replicou: “’Quem é que te disse que estavas nu? Será que foste comer do fruto daquela árvore, que eu tinha proibido?’” (Gn., 3, 11). Repare-se que Deus mostra não saber qual foi a acção de Adão e Eva.
O mesmo se passa com Caim e Abel. Caim mata Abel por ciúmes e quando Deus lhe pergunta onde está o seu irmão, responde: “’Não sei. Será que eu sou o guarda do meu irmão?’” (Gn., 4, 9). Deus primeiramente não lhe disse “porque mataste o teu irmão?”. E não lhe disse porque, de facto, não sabia. 
Esse respeito de Deus pelo seu povo e pela afirmação da sua liberdade fica também marcado pelo episódio da destruição de Sodoma e Gomorra. O diálogo entre Abraão e Deus é conclusivo. Abraão tenta desculpar os seus iguais dos comportamentos ignominiosos e argumenta que não deve pagar todo um povo pelas más acções de uns tantos. O diálogo termina assim: “’Que o meu Senhor não se zangue, se eu falo uma vez mais. Suponhamos que lá existem só dez pessoas que estão inocentes.’ O Senhor respondeu: ‘Também não a destruirei, em atenção a esses dez’” (Gn, 18, 32). Estes exemplos são tirados das primeiras páginas da Bíblia. Imagine-se, então, o rol de acções marginais que os indivíduos irão cometer ao longo da História do povo de Israel que o Antigo Testamento, conjunto denso e avultado de obras, nos relata!
Apesar de tudo, Deus irá compadecer-se com frequência do Seu povo. Mesmo que ele continue a desiludi-Lo. O exemplo mais marcante está na tarefa que foi resgatar o Seu povo à escravidão do Egipto e este, a caminho da terra prometida, depressa se rebela por diversas acções contrárias às prescritas contra tamanho acto de bondade e perdão.
Todas as interpretações do simbolismo bíblico dão para uma coisa e o seu contrário, mas não podem ignorar que Deus apresenta ao seu povo um manual de bons costumes e de acções rectas e os indivíduos que constituem esse povo, por interesses particulares e vontade acérrima de ocupar esse lugar que é reservado a Deus, dão azo à guerra e às dissensões permanentes, querendo ao fim e ao cabo, responsabilizar Deus pelo uso da liberdade com que foram dotados.
Os homens continuam a não perceber que Deus é insubstituível porque Ele não está no mesmo plano nem se rege pelos mesmos princípios da humanidade. Nesse desconhecimento, os indivíduos alimentam uma guerra sem quartel para atingirem um lugar a que nunca poderão aceder porque a sua natureza não o permite: todo o homem é imanente à criação, confunde a parte com o todo de que se afastou. Apenas Deus enquanto transcendente, compreende a totalidade de que nós apenas somos parte.

1 comentário:

  1. "O mal ou o bem que cada um fizer só a si lhe diz respeito, não provém da vontade de Deus". É verdade que muito mal existente vem da acção livre humana. Assim se explica o mal moral. Mas, como explicar o mal natural? Se Deus é bom, omnipotente, omnisciente, então por que razão não acaba com o mal natural? Talvez Deus não exista, ou seja apenas uma projecção dos medos e receios humanos? Ou talvez Deus não seja assim tão bom, omnipotente ou omnisciente?

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