A
PANDEMIA VENCERÁ O HEDONISMO? NÃO, NÃO VENCERÁ!!!
Artur
Manso
O
prazer e a felicidade
A expressão mais ouvida
ao longo do confinamento, de alcance mundial, devido à digressão que o vírus covid-19 decidiu fazer através dos
humanos é que irá ficar tudo bem. Mas o que vai, então, ficar bem e para quem?
Na existência da humanidade, desde o seu início, parece haver uma competição
permanente entre homens, bactérias e vírus. Na verdade este é apenas mais um
vírus, mas o que terá levado os políticos a, pela primeira vez na história da
humanidade, num tempo de triunfo do individualismo e onde o hedonismo se
instalou, a circunscrever aos seus domicílios, com sucesso rotundo, os seus habitantes?
Num tempo de aceleração vertiginosa, onde se discute e legisla sobre a abreviação
da morte a pedido, onde se vive a maior parte do tempo a pensar apenas no
imediato, o que levou os indivíduos a um estado de aceitação voluntária de
perda básica da liberdade? Que direito têm os Estados, democráticos ou não, de
impedir a decisão individual numa crise desta natureza sobre a qual pouco se
sabe e muito se ignora? O hedonismo tem uma longa história, tendo sido propagado
pelo contemporâneo de Sócrates, Aristipo de
Cirene (ca. 435-335 a.C.), que defendia que o
prazer, independentemente da sua origem é o único caminho para a felicidade, podendo,
assim, coincidir com o sentido da vida. A contemporaneidade, no discurso social
e político, nos códigos de direito e nas constituições dos Estados, verte com
insistência os princípios ensinados por Sócrates, Jesus e outros sensatos mestres
da humanidade, mas na prática do quotidiano e na maneira como organiza a vida
em sociedade, rendeu-se há muito aos que eles mais combateram. E não é só a
juventude, a qual em todo o tempo e lugar mantém a tendência de viver no limite
do risco e da subversão. As gerações instaladas são as maiores responsáveis por
este estado de coisas, pois cristalizam os maus exemplos ao passar a vida
focados no trabalho para cada vez acumularem mais capital que hão-de gastar
adquirindo bens materiais que lhes permitam distinguir-se do outro, deixando as
relações humanas fora das suas preocupações imediatas. É verdade que continuam
a unir-se maritalmente e a gerar filhos, mas essas partilhas não são o centro dos
seus interesses e os filhos aparecem enquanto herdeiros do legado acumulado. Os maiores aliados do homem contemporâneo são,
com o êxito da tecnologia, os sofistas e os hedonistas. Os primeiros triunfaram
com a relatividade dos valores e a crença absoluta de que a ciência e a
tecnologia permitem a vida perfeita à comunidade dos humanos. Os segundos, com
a vulgarização de que a vida é o momento e pouco interessa o dia de amanhã. Todas
as crises mostram, independentemente da sua extensão, que a bondade humana existe,
mas revela-se apenas nos piores momentos da vida societária, sendo posta de
parte logo que o normal é retomado. Tinha razão Baudelaire (1821-1867) quando
referia que a natureza não ensina nada ela “constrange o homem a comer, beber e
dormir, é a voz do nosso interesse. Na natureza apenas há atrocidades”, o
“progresso acabará por atrofiar tanto o que em nós há de espiritual que nada do
que os utopistas algum dia imaginaram nas suas intervenções sacrílegas,
sanguinárias e antinaturais se poderá comparar aos seus resultados positivos”.
O medo
Chegados a 2020, em pleno triunfo da ciência e da tecnologia,
esperar-se-ia quando este vírus apareceu, uma atitude mais ponderada tanto mais
que, demorou alguns meses a instalar-se e de certo modo eram previsíveis,
precisamente pela ciência e a tecnologia, o tipo de estragos que iria provocar.
Os responsáveis políticos, primeiro, deixaram andar e depois, quando a mortandade
não podia ser evitada, decidiram fechar as pessoas em casa, separando uns dos
outros, numa atitude manifestamente exagerada e para a qual não se encontram
mandatados. Seria preciso controlar e restringir as fronteiras? Sim, com
certeza. Identificados os grupos de risco, impunha-se que fossem protegidos?
Sim, com certeza. Era preciso dentro dos países limitar aglomerações de pessoas?
Sim, com certeza. Era preciso repensar a maneira de organizar o comércio e os
serviços? Sim, com certeza. Mas era preciso fechar os sectores da sociedade, de
igual modo, em todos os países após a mortandade já se ter instalado? Por tudo
que sabemos, não, não era. As escolas não precisavam de encerrar porque as
crianças e os jovens não constituem um grupo de risco. Se o problema era não
poderem passar tempo com os avós e outros cuidadores mais velhos, apenas esse
impedimento se justificava. Se os cafés, restaurantes e restantes serviços
deviam evitar aglomerados de gente, reduzia-se a lotação. Se os templos da fé
tinham que acautelar ou retirar parte dos rituais e prover no seu interior ao
distanciamento, tomavam essas precauções e mantinham o culto. Se havia
necessidade de distanciamento físico, promovia-se esse comportamento, mas destruir
por igual o ganha pão de milhões de cidadãos por causa de um medo instalado que
não evitou a mortandade, não me parece sensato. Voltando aos mais velhos, ao
grupo de risco, não compete ao Estado decretar quando podem ou não podem sair
de sua casa. Essa autoridade tê-la-á porventura em relação aos que estão
institucionalizados por nesses casos conflituarem dois direitos: o do individuo
e o do grupo com quem partilha o dia a dia. Nos casos em que vivem em
residência própria, compete ao Estado apenas e só alertá-los para aquilo que
lhes pode acontecer se frequentarem o espaço público, os problemas que podem
vir a ter e certificar-se de que na vida societária, cumprem as regras de
segurança. Os Estados apenas podem obrigar os infectados ao confinamento. É um
grave atentado aos direitos individuais forçar alguém a ficar retido nos seus
aposentos meses ou anos, sem poder ser visitado por filhos, netos e amigos, com
a promessa que estão a preservar a sua saúde. Essa decisão pertence a cada um
consciente dos riscos que corre. Não me parece que uma parte significativa dos
idosos prefira o isolamento ao convívio com outros e colocada a escolha acho
que não prescindirão de abraçar e acarinhar os filhos e netos em troca de um
hipotético aumento de tempo de vida. As decisões sobre a vida e a morte devem
ser da inteira responsabilidade do indivíduo e não do proclamado interesse
geral da sociedade.
No tempo de triunfo das redes sociais, da vida em directo, chegamos à
conclusão que afinal, na realidade portuguesa, ainda há um número considerável
de indivíduos em idade escolar sem qualquer acesso ao mundo digital e por isso
ficaram imediatamente privados das aulas virtuais que substituíram as
presenciais. Identificada essa carência porque não pôde o Estado, em algumas
das suas escolas, continuar a acolhê-los normalmente no período lectivo, como
fez e bem, com os filhos dos profissionais de saúde e segurança, garantindo-lhes
iguais condições de acesso à aprendizagem? Que dizer da dedicação de todo o sistema
de saúde ao vírus, exceptuando os serviços de urgência, com graves prejuízos
para milhões de cidadãos que viram adiados tratamentos e intervenções médicas
essenciais? Quantos deles, hão-de acabar por falecer por falta de tratamento?
Que dizer da falta de equipamento de protecção que grassava nos serviços,
fazendo perigar a vida dos seus profissionais?
Parece que os países eram constituídos por realidades sociais que se
desconheciam umas às outras. Os idosos viviam a sua solidão, os mais jovens um
pouco alienados no fruir o dia a dia como se não houvesse amanhã, os
trabalhadores, na generalidade, obcecados com a produtividade e os respectivos ganhos
que os levariam em breve a um qualquer local paradisíaco para um repouso
merecido recheado de todas as comodidades. E veio um bicho microscópico, que
nem é assim tão ofensivo, andou por aí, fez-se anunciar, deu-se a conhecer e a
tudo, os Estados todo poderosos, reagiram com arrogância e distanciamento. Instalado
no seu seio, de imediato, não foi o pânico que tomou os países e as populações
mas sim o medo. E que medo! Nem foi preciso muito esforço para as convencer a confinar-se
nos seus lares, afastando uns dos outros, com a convicção de que só assim o
bicho haveria de passar e as sociedades ficariam mais ou menos incólumes. O
povo, obedientemente, ficou em casa mas a mortandade não diminuiu. Pessoalmente
não acho má ideia fazer-se uma espécie de retiro durante um período alargado de
dias. Mas assim não, porque as pessoas foram obrigadas a ficar em casa por um
princípio maior, aí permaneceram por períodos cada vez mais longos, mas os
óbitos demoraram a baixar. E continuamos mais ou menos amedrontados à espera da
milagrosa vacina que nos devolva as vidas suspensas, para, no instante que a
normalidade regressar, tudo voltar ao que era anteriormente. Entretanto, uma larga
camada da população demorará muito tempo até recuperar aquilo que tinha e que
os Estados, arbitrariamente, decidiram finalizar. Se a moda pega, doravante
passaremos a ter confinamentos regulares pois não se prevê que a competição
homem–vírus–bactérias fique por aqui. Já agora, em toda a crise, alguém notou
diferenças de procedimento no cerceamento dos direitos fundamentais mais
básicos dos cidadãos nos Estados democráticos e nos regimes totalitários?
O luto
E as reacções!!! Entre a mais repetida a de estarmos em uma guerra. Mas felizmente
isto não é uma guerra. Há mortos em quantidade elevada? sim, há. Os serviços de
saúde em diversos países entraram em rutura? Sim, entraram. Há milhares de
pessoas que choram os entes queridos? Sim, há. Mas passando o vírus, não haverá
destruição física de países, cidades, lugares variados, não haverá corpos
mutilados e retalhados, não haverá milhões de pais a chorar os seus filhos que
foram impedidos de viver… haverá milhões de vidas alteradas, mas nada que se
compare ao sofrimento de uma guerra, as pessoas reencontrar-se-ão nos espaços
do costume e não em escombros pestilentos, mesmo que uma parte significativa de
indivíduos tenha que se focar, de novo, em arranjar forma de viver. Até este
esforço será diferente dos anteriores quando os indivíduos viam a sua base de
trabalho desaparecer por circunstâncias exteriores, agora, foram os governantes
que unilateralmente obrigaram a fechar as suas bases de sustento. E se ainda
lhes mantivessem os vencimentos como até aí já que foram eles a provocar a
situação, mas não! O vírus passará e cada um terá que se desenrascar e tratar
da sua vida, resistindo também ao traumatismo dos funerais sem despedida e sem
ritual. Haverá dificuldade em superar a ausência dos próximos sem nos ter sido
permitido, um beijo, um abraço, um afago. Sem os velarmos e para aqueles que
são crentes, sem poderem ser amparados pelas orações que sempre os
acompanharam, que se tinham habituado a pronunciar nos funerais em que
participaram como uma espécie de antecâmara do que haveria de ser quando o dia
da sua morte chegasse. O dia chegou e todo o ritual lhes foi negado. Não porque
tivessem sucumbido em uma guerra ou pura e simplesmente desaparecido sem se
saber para onde, mas porque, morrendo na solidão dos hospitais ou no isolamento
do lar, alguém impôs como melhor medida, um rápido funeral, na quase ausência
dos mais próximos. Haverá tempo para o luto, dizem, mas o luto faz-se no momento
da morte e não à posteriori quando provavelmente, alguns dos que foram
impedidos de velar um ente querido, terão, também, já partido. Dizem-nos ser um
sacrifício necessário, em prol de um bem maior, mas eu não partilho dessa
opinião. Haveria outras formas de lidar com este vazio e estou convencido de
que há um número substancial de indivíduos que lúcida e esclarecidamente
gostariam que tivesse sido possível poderem optar por estar presentes. As
medidas tomadas pelos governos em todos os sectores das respectivas sociedade
foram amplamente desproporcionais em relação à gravidade do problema, pois como
se tornou evidente, a pandemia variou de país para país e dentro de cada um, de
região para região e, sendo assim, tratar tudo como igual, não terá sido a
melhor estratégia.
A esperança
O mundo hoje nem é melhor nem pior que em outros tempos. É o mundo que
temos ou o mundo possível, como discutia em 1759 o iluminista Voltaire em Cândido ou do optimismo aquando
do terrível terramoto de Lisboa de 1755. O jovem Cândido educado por Pangloss
sob os ensinamentos do optimismo de Leibniz, confrontado com a indescritível devastação
natural acontecida numa cidade populosa sem se fazer anunciar, acaba por moderar
o optimismo, combatendo a ideia de que o homem com a ciência e a técnica se
basta a si mesmo. Esta ocorrência era a prova que “o melhor dos mundos
possíveis” é aterrado por acontecimentos limite que ultrapassam a vontade e o
conhecimento humano. Mesmo um expoente do iluminismo e da crença absoluta na
razão e no progresso como Voltaire, ante a brutalidade que o terramoto introduziu
na pacata vida de cada um, realisticamente, coloca na boca de Cândido que não
nos devemos ater à exaltação de que vai tudo bem, mas “o que é preciso é
cultivar o nosso jardim”. Que jardim ficará quando a pandemia nos deixar? Haverá
pequenas mudanças, boas e más, mas tudo voltará ao que sempre foi. Pela longa
história da humanidade e pelos conflitos traumáticos recentes onde se destaca,
pela sua dimensão de horror em massa a 2ª grande guerra, bem como diversas
catástrofes naturais recentes de grande dimensão, haverá uns dias de
proximidade solidária, de espécie de mudança interior, que ajudará uma parte do
luto que teremos que fazer. A partir desse breve momento, tudo voltará ao
normal, isto é, à alienação da produção e do consumo longe da preocupação pelo
outro e aqui o outro é mesmo o mais próximo, aquele que habita connosco.
Arranjar-se-ão outros heróis a quem momentaneamente se hão-de bater palmas. Na
verdade, a esperança foi uma oferenda que os deuses num acto de fúria
consentiram aos humanos e como até aqui, solitariamente, continuará circunscrita
à panela de onde Pandora não a deixou sair à espera de um novo tempo que há
muito nos é prometido mas que não será ainda desta vez que se há-de consumar. A
esperança é o horizonte dos hercúleos trabalhos da humanidade, pois estamos sempre
ansiosos por destruir Troia para nos podermos redimir voltando a Ítaca. Mas Ítaca
fica lá longe e pelo caminho, nós que somos apenas humanos, sucumbiremos de
imediato às primeiras tentações. Nem todas as vidas somadas nos darão o tempo
necessário para avistar esse lugar de partida, quanto mais para nele voltarmos
a repousar. É nesta (con)fusão que as sociedades continuarão a viver:
solidárias nos momentos limite, desleixadas nos restantes períodos de tempo. Termino
deixando este esforço da persistente viagem de que a humanidade nunca se há-de
livrar no singelo, mas profundo, poema de Francisco Sardo, precisamente
intitulado Ítaca:
de
Ítaca ficou-nos a distância
ou
a viagem de tudo ainda podermos
-
paixão do labirinto onde tecemos
o
que nos resta embora
na abundância
do
que perder nos cumpre em cada hora
só
a viagem vale e nos devolve
(na
cidade que depois esqueceremos)
o
que memória foi da intensidade.
Artur Manso
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