segunda-feira, 25 de maio de 2020

De como uma pandemia assim, assim, virou em impensável "palermia" o mundo todo




A PANDEMIA VENCERÁ O HEDONISMO? NÃO, NÃO VENCERÁ!!!
Artur Manso

O prazer e a felicidade
A expressão mais ouvida ao longo do confinamento, de alcance mundial, devido à digressão que o vírus covid-19 decidiu fazer através dos humanos é que irá ficar tudo bem. Mas o que vai, então, ficar bem e para quem? Na existência da humanidade, desde o seu início, parece haver uma competição permanente entre homens, bactérias e vírus. Na verdade este é apenas mais um vírus, mas o que terá levado os políticos a, pela primeira vez na história da humanidade, num tempo de triunfo do individualismo e onde o hedonismo se instalou, a circunscrever aos seus domicílios, com sucesso rotundo, os seus habitantes? Num tempo de aceleração vertiginosa, onde se discute e legisla sobre a abreviação da morte a pedido, onde se vive a maior parte do tempo a pensar apenas no imediato, o que levou os indivíduos a um estado de aceitação voluntária de perda básica da liberdade? Que direito têm os Estados, democráticos ou não, de impedir a decisão individual numa crise desta natureza sobre a qual pouco se sabe e muito se ignora? O hedonismo tem uma longa história, tendo sido propagado pelo contemporâneo de Sócrates, Aristipo de Cirene (ca. 435-335 a.C.), que defendia que o prazer, independentemente da sua origem é o único caminho para a felicidade, podendo, assim, coincidir com o sentido da vida. A contemporaneidade, no discurso social e político, nos códigos de direito e nas constituições dos Estados, verte com insistência os princípios ensinados por Sócrates, Jesus e outros sensatos mestres da humanidade, mas na prática do quotidiano e na maneira como organiza a vida em sociedade, rendeu-se há muito aos que eles mais combateram. E não é só a juventude, a qual em todo o tempo e lugar mantém a tendência de viver no limite do risco e da subversão. As gerações instaladas são as maiores responsáveis por este estado de coisas, pois cristalizam os maus exemplos ao passar a vida focados no trabalho para cada vez acumularem mais capital que hão-de gastar adquirindo bens materiais que lhes permitam distinguir-se do outro, deixando as relações humanas fora das suas preocupações imediatas. É verdade que continuam a unir-se maritalmente e a gerar filhos, mas essas partilhas não são o centro dos seus interesses e os filhos aparecem enquanto herdeiros do legado acumulado.  Os maiores aliados do homem contemporâneo são, com o êxito da tecnologia, os sofistas e os hedonistas. Os primeiros triunfaram com a relatividade dos valores e a crença absoluta de que a ciência e a tecnologia permitem a vida perfeita à comunidade dos humanos. Os segundos, com a vulgarização de que a vida é o momento e pouco interessa o dia de amanhã. Todas as crises mostram, independentemente da sua extensão, que a bondade humana existe, mas revela-se apenas nos piores momentos da vida societária, sendo posta de parte logo que o normal é retomado. Tinha razão Baudelaire (1821-1867) quando referia que a natureza não ensina nada ela “constrange o homem a comer, beber e dormir, é a voz do nosso interesse. Na natureza apenas há atrocidades”, o “progresso acabará por atrofiar tanto o que em nós há de espiritual que nada do que os utopistas algum dia imaginaram nas suas intervenções sacrílegas, sanguinárias e antinaturais se poderá comparar aos seus resultados positivos”.

O medo
Chegados a 2020, em pleno triunfo da ciência e da tecnologia, esperar-se-ia quando este vírus apareceu, uma atitude mais ponderada tanto mais que, demorou alguns meses a instalar-se e de certo modo eram previsíveis, precisamente pela ciência e a tecnologia, o tipo de estragos que iria provocar. Os responsáveis políticos, primeiro, deixaram andar e depois, quando a mortandade não podia ser evitada, decidiram fechar as pessoas em casa, separando uns dos outros, numa atitude manifestamente exagerada e para a qual não se encontram mandatados. Seria preciso controlar e restringir as fronteiras? Sim, com certeza. Identificados os grupos de risco, impunha-se que fossem protegidos? Sim, com certeza. Era preciso dentro dos países limitar aglomerações de pessoas? Sim, com certeza. Era preciso repensar a maneira de organizar o comércio e os serviços? Sim, com certeza. Mas era preciso fechar os sectores da sociedade, de igual modo, em todos os países após a mortandade já se ter instalado? Por tudo que sabemos, não, não era. As escolas não precisavam de encerrar porque as crianças e os jovens não constituem um grupo de risco. Se o problema era não poderem passar tempo com os avós e outros cuidadores mais velhos, apenas esse impedimento se justificava. Se os cafés, restaurantes e restantes serviços deviam evitar aglomerados de gente, reduzia-se a lotação. Se os templos da fé tinham que acautelar ou retirar parte dos rituais e prover no seu interior ao distanciamento, tomavam essas precauções e mantinham o culto. Se havia necessidade de distanciamento físico, promovia-se esse comportamento, mas destruir por igual o ganha pão de milhões de cidadãos por causa de um medo instalado que não evitou a mortandade, não me parece sensato. Voltando aos mais velhos, ao grupo de risco, não compete ao Estado decretar quando podem ou não podem sair de sua casa. Essa autoridade tê-la-á porventura em relação aos que estão institucionalizados por nesses casos conflituarem dois direitos: o do individuo e o do grupo com quem partilha o dia a dia. Nos casos em que vivem em residência própria, compete ao Estado apenas e só alertá-los para aquilo que lhes pode acontecer se frequentarem o espaço público, os problemas que podem vir a ter e certificar-se de que na vida societária, cumprem as regras de segurança. Os Estados apenas podem obrigar os infectados ao confinamento. É um grave atentado aos direitos individuais forçar alguém a ficar retido nos seus aposentos meses ou anos, sem poder ser visitado por filhos, netos e amigos, com a promessa que estão a preservar a sua saúde. Essa decisão pertence a cada um consciente dos riscos que corre. Não me parece que uma parte significativa dos idosos prefira o isolamento ao convívio com outros e colocada a escolha acho que não prescindirão de abraçar e acarinhar os filhos e netos em troca de um hipotético aumento de tempo de vida. As decisões sobre a vida e a morte devem ser da inteira responsabilidade do indivíduo e não do proclamado interesse geral da sociedade.
No tempo de triunfo das redes sociais, da vida em directo, chegamos à conclusão que afinal, na realidade portuguesa, ainda há um número considerável de indivíduos em idade escolar sem qualquer acesso ao mundo digital e por isso ficaram imediatamente privados das aulas virtuais que substituíram as presenciais. Identificada essa carência porque não pôde o Estado, em algumas das suas escolas, continuar a acolhê-los normalmente no período lectivo, como fez e bem, com os filhos dos profissionais de saúde e segurança, garantindo-lhes iguais condições de acesso à aprendizagem? Que dizer da dedicação de todo o sistema de saúde ao vírus, exceptuando os serviços de urgência, com graves prejuízos para milhões de cidadãos que viram adiados tratamentos e intervenções médicas essenciais? Quantos deles, hão-de acabar por falecer por falta de tratamento? Que dizer da falta de equipamento de protecção que grassava nos serviços, fazendo perigar a vida dos seus profissionais?   
Parece que os países eram constituídos por realidades sociais que se desconheciam umas às outras. Os idosos viviam a sua solidão, os mais jovens um pouco alienados no fruir o dia a dia como se não houvesse amanhã, os trabalhadores, na generalidade, obcecados com a produtividade e os respectivos ganhos que os levariam em breve a um qualquer local paradisíaco para um repouso merecido recheado de todas as comodidades. E veio um bicho microscópico, que nem é assim tão ofensivo, andou por aí, fez-se anunciar, deu-se a conhecer e a tudo, os Estados todo poderosos, reagiram com arrogância e distanciamento. Instalado no seu seio, de imediato, não foi o pânico que tomou os países e as populações mas sim o medo. E que medo! Nem foi preciso muito esforço para as convencer a confinar-se nos seus lares, afastando uns dos outros, com a convicção de que só assim o bicho haveria de passar e as sociedades ficariam mais ou menos incólumes. O povo, obedientemente, ficou em casa mas a mortandade não diminuiu. Pessoalmente não acho má ideia fazer-se uma espécie de retiro durante um período alargado de dias. Mas assim não, porque as pessoas foram obrigadas a ficar em casa por um princípio maior, aí permaneceram por períodos cada vez mais longos, mas os óbitos demoraram a baixar. E continuamos mais ou menos amedrontados à espera da milagrosa vacina que nos devolva as vidas suspensas, para, no instante que a normalidade regressar, tudo voltar ao que era anteriormente. Entretanto, uma larga camada da população demorará muito tempo até recuperar aquilo que tinha e que os Estados, arbitrariamente, decidiram finalizar. Se a moda pega, doravante passaremos a ter confinamentos regulares pois não se prevê que a competição homem–vírus–bactérias fique por aqui. Já agora, em toda a crise, alguém notou diferenças de procedimento no cerceamento dos direitos fundamentais mais básicos dos cidadãos nos Estados democráticos e nos regimes totalitários?   

O luto
E as reacções!!! Entre a mais repetida a de estarmos em uma guerra. Mas felizmente isto não é uma guerra. Há mortos em quantidade elevada? sim, há. Os serviços de saúde em diversos países entraram em rutura? Sim, entraram. Há milhares de pessoas que choram os entes queridos? Sim, há. Mas passando o vírus, não haverá destruição física de países, cidades, lugares variados, não haverá corpos mutilados e retalhados, não haverá milhões de pais a chorar os seus filhos que foram impedidos de viver… haverá milhões de vidas alteradas, mas nada que se compare ao sofrimento de uma guerra, as pessoas reencontrar-se-ão nos espaços do costume e não em escombros pestilentos, mesmo que uma parte significativa de indivíduos tenha que se focar, de novo, em arranjar forma de viver. Até este esforço será diferente dos anteriores quando os indivíduos viam a sua base de trabalho desaparecer por circunstâncias exteriores, agora, foram os governantes que unilateralmente obrigaram a fechar as suas bases de sustento. E se ainda lhes mantivessem os vencimentos como até aí já que foram eles a provocar a situação, mas não! O vírus passará e cada um terá que se desenrascar e tratar da sua vida, resistindo também ao traumatismo dos funerais sem despedida e sem ritual. Haverá dificuldade em superar a ausência dos próximos sem nos ter sido permitido, um beijo, um abraço, um afago. Sem os velarmos e para aqueles que são crentes, sem poderem ser amparados pelas orações que sempre os acompanharam, que se tinham habituado a pronunciar nos funerais em que participaram como uma espécie de antecâmara do que haveria de ser quando o dia da sua morte chegasse. O dia chegou e todo o ritual lhes foi negado. Não porque tivessem sucumbido em uma guerra ou pura e simplesmente desaparecido sem se saber para onde, mas porque, morrendo na solidão dos hospitais ou no isolamento do lar, alguém impôs como melhor medida, um rápido funeral, na quase ausência dos mais próximos. Haverá tempo para o luto, dizem, mas o luto faz-se no momento da morte e não à posteriori quando provavelmente, alguns dos que foram impedidos de velar um ente querido, terão, também, já partido. Dizem-nos ser um sacrifício necessário, em prol de um bem maior, mas eu não partilho dessa opinião. Haveria outras formas de lidar com este vazio e estou convencido de que há um número substancial de indivíduos que lúcida e esclarecidamente gostariam que tivesse sido possível poderem optar por estar presentes. As medidas tomadas pelos governos em todos os sectores das respectivas sociedade foram amplamente desproporcionais em relação à gravidade do problema, pois como se tornou evidente, a pandemia variou de país para país e dentro de cada um, de região para região e, sendo assim, tratar tudo como igual, não terá sido a melhor estratégia.      

A esperança  
O mundo hoje nem é melhor nem pior que em outros tempos. É o mundo que temos ou o mundo possível, como discutia em 1759 o iluminista Voltaire em Cândido ou do optimismo aquando do terrível terramoto de Lisboa de 1755. O jovem Cândido educado por Pangloss sob os ensinamentos do optimismo de Leibniz, confrontado com a indescritível devastação natural acontecida numa cidade populosa sem se fazer anunciar, acaba por moderar o optimismo, combatendo a ideia de que o homem com a ciência e a técnica se basta a si mesmo. Esta ocorrência era a prova que “o melhor dos mundos possíveis” é aterrado por acontecimentos limite que ultrapassam a vontade e o conhecimento humano. Mesmo um expoente do iluminismo e da crença absoluta na razão e no progresso como Voltaire, ante a brutalidade que o terramoto introduziu na pacata vida de cada um, realisticamente, coloca na boca de Cândido que não nos devemos ater à exaltação de que vai tudo bem, mas “o que é preciso é cultivar o nosso jardim”. Que jardim ficará quando a pandemia nos deixar? Haverá pequenas mudanças, boas e más, mas tudo voltará ao que sempre foi. Pela longa história da humanidade e pelos conflitos traumáticos recentes onde se destaca, pela sua dimensão de horror em massa a 2ª grande guerra, bem como diversas catástrofes naturais recentes de grande dimensão, haverá uns dias de proximidade solidária, de espécie de mudança interior, que ajudará uma parte do luto que teremos que fazer. A partir desse breve momento, tudo voltará ao normal, isto é, à alienação da produção e do consumo longe da preocupação pelo outro e aqui o outro é mesmo o mais próximo, aquele que habita connosco. Arranjar-se-ão outros heróis a quem momentaneamente se hão-de bater palmas. Na verdade, a esperança foi uma oferenda que os deuses num acto de fúria consentiram aos humanos e como até aqui, solitariamente, continuará circunscrita à panela de onde Pandora não a deixou sair à espera de um novo tempo que há muito nos é prometido mas que não será ainda desta vez que se há-de consumar. A esperança é o horizonte dos hercúleos trabalhos da humanidade, pois estamos sempre ansiosos por destruir Troia para nos podermos redimir voltando a Ítaca. Mas Ítaca fica lá longe e pelo caminho, nós que somos apenas humanos, sucumbiremos de imediato às primeiras tentações. Nem todas as vidas somadas nos darão o tempo necessário para avistar esse lugar de partida, quanto mais para nele voltarmos a repousar. É nesta (con)fusão que as sociedades continuarão a viver: solidárias nos momentos limite, desleixadas nos restantes períodos de tempo. Termino deixando este esforço da persistente viagem de que a humanidade nunca se há-de livrar no singelo, mas profundo, poema de Francisco Sardo, precisamente intitulado Ítaca:

                        de Ítaca ficou-nos a distância
                        ou a viagem de tudo ainda podermos

                        - paixão do labirinto   onde tecemos
                        o que nos resta embora
                                                              na abundância
                        do que perder nos cumpre em cada hora

                        só a viagem vale         e nos devolve
                        (na cidade que depois esqueceremos)
                        o que memória foi da intensidade.

Artur Manso

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